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Foto do escritorPortal Saúde Agora

A mulher que sentia o cheiro do Parkinson



Les Milne era um jovem escocês promissor, mas ainda jovem, seu pai morreu, sua mãe foi internada com diagnóstico de depressão maníaca. Sua namorada do ensino médio, Joy, foi atraída por ele tanto por sua tristeza quanto por seus talentos.


— Estávamos muito apaixonados — conta Joy, que agora é uma avó de 72 anos.


Ela também adorava o cheiro de Les: um aroma de sal e almíscar, com um toque de couro do sabão carbólico que usava na natação.


Joy sempre teve um nariz excepcionalmente sensível. Sua avó tinha hiposmia (diminuição do olfato) e a incentivava, quando criança, a aproveitar ao máximo suas habilidades. Mesmo assim, sua avó não considerava odor um tema educado de conversa e incentivou a neta a guardar para si sua experiência.


Les, por exemplo, só soube do nariz peculiar de Joy bem depois. Ele se formou como médico e ela como enfermeira. Casaram-se durante sua residência médica e tiveram três filhos.


Les passava longas horas na sala de cirurgia, por isso, Joy percebia que ele voltava para casa cheirando a anestésicos, antissépticos e sangue. No entanto, em agosto de 1982, logo após seu 32º aniversário, ele voltou cheirando a algo novo e desagradável, como um grosso mofo. A partir de então, o odor nunca passou, embora nem Les nem quase ninguém, além de sua esposa, pudesse detectá-lo. Para Joy, o cheiro dele parecia ter mudado significativamente, como se tivesse sido substituído pelo de outra pessoa.


Les também começou a mudar de outras maneiras, e logo o cheiro passou a parecer trivial — era como se sua personalidade tivesse mudado. Tornou-se distante, mal-humorado e apático. Uma estranha deterioração física também começou.


Depois de mais de uma década difícil, ocorreu a Joy que as mudanças no marido poderiam ter alguma causa orgânica, como sinais de uma doença. Quando ele começou a ver uma sombra ao seu lado, ela suspeitou de um tumor cerebral. Então, o convenceu a consultar o médico, que o encaminhou a um neurologista.


O diagnóstico


A doença de Parkinson é tipicamente classificada como um transtorno do movimento e seus sintomas são motores: tremor, rigidez e lentidão. Mas os sintomas psicológicos e cognitivos são igualmente terríveis e começam anos antes de quaisquer mudanças no movimento. E ainda assim não sugerem um diagnóstico.


Irritabilidade, fadiga e sono perturbado são extremamente comuns entre os saudáveis e os enfermos. Assim, Joy percebeu que, para Les, os sintomas começaram quase 15 anos antes da consulta com o médico. Segundo ela, se ele tivesse tido um diagnóstico quando os sintomas surgiram, muita dor poderia ter sido evitada.


A doença de Parkinson ainda é diagnosticada como há 200 anos, com base em seus sintomas motores característicos, mas quando eles surgem, a maioria dos neurônios que a doença vai matar já morreu.


Anos mais tarde, Joy convenceu Les a ir com ela a uma reunião de pacientes com Parkinson. A sala estava cheia quando chegaram. Joy se espremeu atrás de um homem quando ele estava tirando o casaco e, de repente, sentiu uma contração no pescoço, levantando as narinas instintivamente para o ar. Muitas vezes ela tinha essa reação a cheiros fortes e inesperados.


Nesse caso, estranhamente, era o odor desagradável que pairou sobre seu marido nos últimos 25 anos. O homem cheirava igual a Les. O mesmo aconteceu com todos os outros pacientes: a conclusão foi imediata.


oy e Les temiam que não levassem a descoberta muito a sério. Então, procuraram um cientista de mente aberta e escolheram Tilo Kunath, o pesquisador de Parkinson na Universidade de Edimburgo. Em um primeiro momento, a conversa não avançou, mas seis meses depois, a pedido de um colega que havia se impressionado com cães farejadores de câncer, Kunath procurou Joy e ela contou a história do cheiro de Les.


Ele ligou para Perdita Barran, uma química, para perguntar o que achava. Ela suspeitou que Joy estava simplesmente sentindo o odor usual dos idosos e doentes.


Então, Barran e Kunath realizaram um pequeno estudo, com 12 participantes: seis pacientes com Parkinson e seis controles saudáveis. Cada participante foi solicitado a usar uma camiseta limpa por 24 horas. As camisetas usadas foram cortadas ao meio. Kunath supervisionou os testes. Joy cheirou aleatoriamente as peças e classificou a intensidade do odor parkinsoniano.


Joy identificou corretamente cada amostra pertencente a um paciente com Parkinson. O ceticismo de Barran evaporou. Mesmo assim, o registro de Joy não era perfeito: ela identificou incorretamente um dos controles como um paciente de Parkinson. Os pesquisadores se perguntaram se a amostra estava contaminada ou se o nariz de Joy havia se cansado. Até que Kunath avaliou: “Está bem. É um falso positivo!”.


De interesse imediato, porém, foi a questão do que estava causando o cheiro, mais concentrado no pescoço. Demorou várias semanas para perceber que talvez viesse do sebo, a substância rica em lipídios secretada pela pele. O sebo está entre as substâncias biológicas menos estudadas.


Então, Barran começou a analisar o sebo de pacientes com Parkinson, na esperança de identificar as moléculas específicas responsáveis pelo cheiro que Joy detectava: uma assinatura química da doença que pudesse ser registrada por máquina e, assim, formar a base de um teste diagnóstico universal, que não dependesse do olfato. No entanto, ninguém parecia estar interessado em financiar o trabalho. Barran, portanto, voltou-se para outros projetos. Após quase um ano, em um evento sobre Parkinson, um homem familiar se aproximou de Kunath.


Ele havia servido como um dos controles saudáveis no estudo piloto e diagnosticado com Parkinson tempos depois. “Você vai ter que me colocar na outra categoria”, disse. Kunath ficou atordoado. A “identificação errada” de Joy não foi um erro, ela diagnosticou o homem antes que a medicina pudesse fazê-lo. O financiamento para o estudo completo de Joy finalmente aconteceu.


— Vimos algo no noticiário e pensamos: “Uau, temos que agir!”. Quem vai financiar, senão nós? — disse Samantha Hutten, diretora de pesquisa translacional na Michael J. Fox Foundation.


Cheiro de Parkinson


Em 25 clínicas do NHS na Inglaterra e Escócia, Barran organizou para enfermeiras coletarem amostras de sebo das costas de pacientes com Parkinson. Barran e seus colegas alimentaram as amostras em um cromatógrafo a gás-espectrômetro de massa. Uma máquina GC-MS separa uma substância em suas partes moleculares componentes para identificação. Barran, então, adicionou uma porta de odor à configuração usual do GC-MS, um tubo do lado da máquina, que se assemelhava a uma tromba de elefante. E Joy ficou posicionada ali, respirando cada tipo de molécula que saía da coluna de separação. Dos mais de 200 fragmentos moleculares que a máquina distinguiu, Joy relatou um forte cheiro de Parkinson na presença de apenas três: eicosano e octadecanal, que são conhecidos por terem aromas fracos de cera ou óleo, além do ácido hipúrico, que geralmente não é relatado. De acordo com o relatório dos pesquisadores de 2019, cada um dos produtos químicos foi encontrado em concentrações mais altas no sebo de pacientes com Parkinson do que nos controles. Essa foi a fonte do cheiro de Parkinson.


Joy, por isso, alcançou uma certa proeminência no campo de Parkinson. O trabalho que ela inspirou é, nas palavras do diretor de pesquisa da fundação Cure Parkinson's, Simon Stott, “provável de se tornar material das lendas”. Joy está listada como coautora em todos os artigos e foi nomeada para o subcomitê de ciência clínica do Congresso Mundial de Parkinson. Ela também deu uma palestra TEDx e foi ouvida por alguns dos cientistas mais respeitados do mundo.


O fascínio por Joy é atribuído ao fato de que ela tem a habilidade de sentir cheiros assim, mas é intensificada pelo fato de que ninguém sabe o porquê. Ela é hiperósmica, mas a hiperosmia tem sido objeto de tão pouca investigação científica séria que não possui nem mesmo um conjunto de critérios acordados. Por isso, sua causa específica é incerta.


O professor Thomas Hummel, da Universidade Técnica de Dresden, um proeminente investigador da função olfativa, disse que sua pesquisa sugere que hiperósmicos têm mais conectividade nas regiões superiores do cérebro responsáveis pelo olfato.


— Essas pessoas prestam mais atenção aos odores, eles tiram mais do sinal olfativo. É uma correlação muito fraca, mas está lá — explicou Hummel. Porém, neste estágio, isso é apenas uma hipótese.


Joy gostou da sua fama, mas o trabalho com o cheiro também a radicalizou e ela tem reputação de ser um pouco intransigente em sua defesa. Segundo ela, ceticismo científico inicial fazia parte da atitude equivocada do corpo médico em relação à doença de Parkinson. Para Joy, como para muitos cuidadores, os aspectos psicológicos da doença eram de longe os mais difíceis de gerenciar, e muito menos de aceitar: eram os sintomas que os neurologistas pareciam menos interessados em reconhecer.


Para Joy, mais provas dessa obstinação médica vieram da descoberta de que ela não era a única a sentir o cheiro da doença de Parkinson. Quando a pesquisa começou a atrair atenção na mídia, Barran e Kunath receberam mensagens de todo o mundo, de pessoas relatando que também haviam notado uma mudança no cheiro de seus entes com Parkinson. De acordo com Joy, alguém em algum lugar deveria ter levado essas pessoas a sério, e a importância do odor poderia ter sido percebida décadas antes.


Que Parkinson tem um odor distinto e uma assinatura química já foi completamente demonstrado, mas por si só este conceito não é muito mais do que uma curiosidade. A razão para o interesse inicial em Joy não era apenas sua alegação de que existia um cheiro, mas que ele ocorria muito cedo no curso da doença.


A capacidade de Joy de sentir o cheiro de Parkinson ainda não havia sido testada em pacientes em estágio inicial: é difícil recrutar tais pessoas para estudos, porque não há uma boa maneira de encontrá-las. Elas, por exemplo, ainda não foram diagnosticadas com Parkinson.


Barran, Kunath e Joy começaram a imaginar a possibilidade de usar testes de sebo para rastrear Parkinson em larga escala. Kunath mencionou que recentemente completou 50 anos. O sistema de saúde escocês automaticamente enviou-lhe um kit de amostragem de fezes, para rastreamento de câncer intestinal. Da mesma maneira, seria simples enviar cotonetes para Parkinson. Barran e a Universidade de Manchester criaram, então, uma empresa derivada, a SebOMIX, para comercializar tal teste. Barran ficou entusiasmada com a perspectiva de detectar outras condições no sebo, que parece ser um repositório de todos os tipos de informações.


— Para ser honesta, realmente acho que essa foi a maior descoberta — afirmou Barran.

Poewe é mais circunspecto. Ele enxerga a análise do sebo como um de uma constelação de testes de triagem dos quais poderia emergir um "perfil de risco". Mas se uma amostra de sebo sugerisse Parkinson em um paciente sem sinais externos, talvez ele passasse por testes mais invasivos. O paciente poderia começar o tratamento precoce com quaisquer medicamentos neuroprotetoras disponíveis na época, cujo desenvolvimento fosse possibilitado pela capacidade de identificar e estudar enfermos em estágio inicial de Parkinson. Como consequência, o paciente nunca chegasse a desenvolver os sintomas clássicos da doença.


— Não acho que este será o teste. Acho que isso é realista para o futuro, pode acontecer. A questão é quando — questionou Poewe.


Enquanto isso, a questão é: qual seria o benefício de dizer a uma pessoa aparentemente saudável que ela algum dia será vítima de uma doença terrível. E se tal pessoa gostaria, ou deveria, querer saber.


Les morreu em 2015, aos 65 anos. Joy vive sozinha, em Perth, na Escócia.


Fonte: O Globo

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