O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou no Diário Oficial da União, nesta quarta-feira, uma nova resolução em que proíbe os médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal, utilizado para a interrupção da gravidez em fase avançada, após 22 semanas nos casos de aborto legal decorrentes de estupro.
Na prática, a norma passa a impedir que a gestação seja interrompida nesse período, o que contraria a Lei brasileira, que não estabelece limite máximo para o procedimento, afirmam especialistas ouvidos pelo GLOBO. Por isso, defendem ainda que a medida pode ser considerada inconstitucional.
A assistolia fetal é um método recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para os casos de aborto legal acima de 20 semanas, segundo as últimas diretrizes divulgadas em junho de 2023. Ele consiste na injeção de determinados agentes farmacológicos, geralmente o cloreto de potássio, para interromper os batimentos cardíacos do feto, que depois é retirado da barriga da mulher para completar o procedimento do aborto.
Hoje, no Brasil, a interrupção da gravidez é permitida quando há risco de vida para a mulher e quando a gestação resulta de um estupro, de acordo com o Código Penal, além dos casos em que há anencefalia do feto, por entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em coletiva de imprensa realizada nesta quinta-feira, o relator do texto e conselheiro federal do CFM, Raphael Câmara, defendeu que a norma é “um ato civilizatório de se impedir de matar um bebê de oito, nove meses”.
— A única coisa que estamos pedindo é impedir de matar um bebê viável. Não estamos tirando o direito (de acessar o aborto legal) — disse o médico, ex-secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro.
No entanto, a alternativa é a indução do parto sem o processo prévio da assistolia, o que não garante que o bebê vá nascer sem vida. É o que explica Rosires Pereira, presidente da Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo):
— Sem a conduta da assistolia fetal, a interrupção da gravidez tardiamente não pode ser realizada. Porque o direito na Lei é para um aborto que tire a vida do feto. Mas a indução do parto nessa fase gestacional pode levar ao nascimento de bebês com vida e com risco de diversos problemas de saúde, como questões neurológicas. E a Lei não define limite de idade, então é um absurdo a norma do CFM — diz.
Ele conta que a comissão, composta por 16 especialistas, passou a quarta-feira discutindo sobre a decisão do Conselho e elaborou um documento em que discordam da medida. O posicionamento deve ser divulgado ainda hoje.
— Não somos favoráveis à realização de um aborto em si, mas existem situações que podem levar a essa necessidade, e esse direito é garantido em Lei. E como temos poucos serviços que o fazem, muitas mulheres não têm acesso no início da gestação. Outro ponto é que meninas de 10, 11 anos que engravidam por um estupro demoram para buscar o procedimento, porque muito frequentemente a violência vem da própria casa, de familiares. Podem demorar até mesmo para notarem as mudanças corporais. E há muitos casos de violência em que as mulheres são mantidas em cativeiro. São esses casos, que geralmente envolvem mulheres pobres, negras e sem acesso, que serão afetados pela resolução — continua.
A ginecologista e obstetra Marianne Pinotti, doutora em Obstetrícia e Ginecologia pela Universidade de São Paulo (USP) e cirurgiã do Grupo de Oncologia mamária e pélvica da Beneficência Portuguesa de São Paulo, também destaca a morosidade do processo para acessar o aborto legal ao criticar a resolução:
— Eu vejo essa norma de forma muito ruim, é uma interferência do CFM na Lei. A Lei brasileira é morosa, as mulheres demoram para conseguir acessar o direito ao aborto e muitas vítimas chegam a 22, 23, 24 semanas grávidas por causa disso, sem outra forma para interromper a gestação. É uma caminhada cruel, nenhuma mulher quer passar por isso. Precisamos facilitar que as mulheres nos casos previstos pela Lei consigam acessar esse serviço.
Quem também diz ter recebido com espanto o anúncio do CFM é o ginecologista e obstetra Cristião Rosas, coordenador no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice – GDC):
— Na minha avaliação, é uma resolução que impede a atuação profissional num procedimento que cientificamente já é incorporado à prática médica do mundo inteiro, então vai na contramão da ciência. E atenta contra os direitos reprodutivos de meninas e mulheres, que vítimas de um estupro serão forçadas a continuar uma gravidez. Do ponto de vista jurídico, aborto já parte do conceito de interromper uma gestação com morte fetal. Não de um nascimento prematuro.
Procurado para comentar sobre a norma do CFM, o Ministério da Saúde afirmou, na noite desta quarta-feira, que "não opina sobre as resoluções de Conselhos Profissionais" e que "cumpre rigorosamente os preceitos vigentes na legislação brasileira".
Medida pode ser considerada inconstitucional
Por na prática impedir o aborto legal após a 22ª semana, o diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Faculdade Saúde Pública da USP (Cepedisa), Fernando Aith, alega que a resolução é inconstitucional. Explica que uma norma do CFM não pode estar acima da Lei, que não menciona limite de idade. Porém, diz que, enquanto o texto não for contestado na Justiça, ele seguirá vigente.
— Embora a resolução não altere a Lei, o médico que praticar a assistolia fetal pode ser processado por infração ética e ter o registro cassado, suspenso, receber algum tipo de advertência do Conselho. Mas uma resolução de uma autarquia não pode contrariar uma lei federal, então ela já nasce ilegal. Só que enquanto um tribunal não declarar a resolução nula, ela segue vigente — diz o especialista.
Em relação aos conflitos legais, Câmara disse que “em 1940 (ano do Código Penal) não existia assistolia fetal” durante a coletiva e defendeu que, por não se tratar do aborto em si, mas sim da assistolia, a nova norma não estaria contrariando a Lei – ainda que os especialistas expliquem que não há como interromper a gestação avançada sem o procedimento.
Sobre as divergências com as orientações da OMS, alegou haver um “conflito de interesses” com o organismo internacional que, segundo ele, seria “a favor da liberação do aborto em qualquer cenário”.
Por outro lado, Aith vê a resolução como uma atuação política do CFM, que não seria nova e que revelaria “a necessidade mais do que urgente de se mudar a lógica do poder normativo dessas autarquias”:
— É uma politização irresponsável de um tema extremamente delicado. O CFM diversas vezes emite resoluções que vão de encontro com políticas públicas do governo, com temas já regulamentados pelo poder público — afirma.
Ele explica que a norma poderá ser contestada na Justiça tanto em casos concretos, como por uma mulher que se enquadre nos requisitos para um aborto legal, mas tenha ultrapassado as 22 semanas, como por uma ação civil que peça de forma ampla a nulidade da resolução:
— No caso concreto, a parte interessada pode pedir ao juiz a autorização do procedimento garantindo que não haja sanções ao médico. Em termos de controle abstrato, que seria uma declaração ilegal da resolução por um todo, o pedido pode ser feito por associações civis, Ministério Público, partidos políticos, entidades que tenham legitimidade para pedir a inconstitucionalidade de uma lei.
Ainda nesta quarta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) encaminhou um ofício ao presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, cobrando do Conselho a fundamentação técnica e legal utilizada para elaborar a resolução.
Em nota, destacou que a legislação brasileira "não fixa nenhum prazo de gravidez para que mulheres solicitem o procedimento" e que a autarquia tem até cinco dias úteis para enviar os esclarecimentos requisitados.
Idade máxima de gestação para o aborto gera polêmica
Essa não é a primeira vez neste ano que o tema da idade gestacional para o aborto legal é trazido ao centro do debate público. Em fevereiro, o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica em que reforçava não haver limite de tempo para interromper a gravidez nas condições previstas em Lei.
O documento substituía uma nota anterior, publicada no governo Bolsonaro, que orientava uma idade máxima de 21 semanas e 6 dias de gestação. A nova nota, no entanto, foi suspensa
O motivo, segundo disse a ministra, Nísia Trindade, seria o fato de o documento não ter passado por todas as esferas necessárias da pasta, nem pela consultoria jurídica do ministério, antes de ser publicado.
De qualquer maneira, as notas técnicas do Ministério são apenas uma recomendação, e não têm poder de restringir, legalmente, a realização do procedimento. Ainda em 2012, por exemplo, a pasta já havia feito uma recomendação para que o aborto legal não ultrapasse a 22ª semana, o que não muda o direito garantido por Lei.
Fonte: O Globo
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