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Alimentos para bebê: empresa adiciona açúcar a produtos em países pobres, incluindo Brasil; especialistas criticam



Uma nova investigação da ONG suíça Public Eye, em colaboração com a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar, analisou rótulos e amostras em laboratório de dois dos principais produtos direcionados a bebês e crianças da Nestlé, o Ninho e o Mucilon, e encontrou quantidades elevadas de açúcar adicionado entre as unidades vendidas em países de média e baixa renda, mas não naquelas comercializadas em nações como a Suíça, de onde é a empresa, e outras europeias.


Para a nutricionista Priscilla Primi, colunista do GLOBO, o relatório revela uma prática comum na indústria alimentícia infantil: — Não é um caso isolado. Tem muitas outras empresas que adicionam não só açúcar, mas gordura em fórmulas infantis. Multinacionais fazem isso nos países mais pobres exatamente porque eles têm uma legislação mais frouxa — afirma.


Divulgada nesta semana, a pesquisa envolveu 150 itens disponíveis nos principais mercados da Nestlé na África, na Ásia e na América Latina. Entre as unidades do Mucilon, cereal infantil líder de mercado indicado a partir dos 6 meses de idade, quase todos (94%) tinham adição de açúcar. Embora a prática não seja contra a lei, de acordo com a legislação da maioria dos países, como no Brasil, ela contraria as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).


O órgão é firme na defesa de que menores de dois anos não devem consumir açúcares livres, ou seja, nem aqueles adicionados pela indústria de alimentos ou pela pessoa em casa, nem os de produtos como mel, xaropes e néctares. O consumo do açúcar deve ser restrito ao presente em itens in natura, como o de frutas ou do leite (a lactose).


— O nosso Guia Alimentar no Brasil também contraindica o açúcar abaixo de dois anos, mas a fabricante o adiciona em cereais que são indicados para crianças a partir dos seis meses de idade. É um contraste que vemos entre um produto que se coloca como adequado para os pequenos, mas que não segue as recomendações das autoridades de saúde — diz Cristiano Boccolini, coordenador do Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz (Observa Infância).


De um modo geral, foram encontrados em média 4g de açúcar adicionado por porção de 21g do Mucilon, o que equivale a quase 20% do total. No Brasil – segundo maior mercado da empresa no mundo –, a quantidade foi de 3g, identificada em 6 de 8 produtos analisados, geralmente com a adição do açúcar maltodextrina.


— Há um grande problema não só no Brasil, mas em todos os países pobres, que é a questão do custo da alimentação ser muito alta. As empresas tentam baratear os seus produtos adicionando açúcar, farinhas, qualquer tipo de ingrediente que seja mais barato do que a proteína. Então, não só a Nestlé, mas várias outras marcas acabam adicionando ingredientes para tornar aquele "cover" do produto mais barato e enganar o consumidor — explica Primi.


A adição foi observada em países como Índia, Indonésia, Vietnã, Tailândia, África do Sul, Etiópia, Nigéria, Senegal e nas Filipinas, onde chegou a 7,3g por porção. Enquanto isso, na Suíça, de onde é a Nestlé, e nos principais mercados europeus, como Alemanha, França e Reino Unido, os produtos para a faixa etária de seis meses de idade são vendidos sem açúcar adicionado, destaca o relatório.


— Países menos privilegiados, onde há mais fome, existe essa ideia do “que bom que estão comendo alguma coisa”, e deixa-se a discussão nutricional de saúde em segundo plano. Mas o acesso à alimentação não é apenas sobre ter ou não comida, é sobre que alimento é esse. Ele promove uma boa saúde? — diz Mariana Kraemer, nutricionista e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições da Universidade Federal de Santa Catarina (Nupre/UFSC).


À Public Eye, o cientista do Departamento de Saúde Materna, Neonatal, da Criança e do Adolescente e Envelhecimento da OMS, Nigel Rollins, classificou esse “duplo padrão” para mercados de países diferentes como algo “injustificável”. Já Francesco Branca, Diretor de Nutrição e Segurança Alimentar da organização, defendeu a necessidade de “ações urgentes” e que “eliminar açúcares adicionados em produtos alimentares destinados a crianças pequenas é uma forma importante de prevenir a obesidade precocemente".


— Os resultados do relatório são muito impactantes em relação ao cenário internacional. Por que as crianças que moram na Europa recebem produtos com melhor qualidade nutricional do que as do Sul global? Há um claro interesse de ampliar esse mercado consumidor, fazer uma formação de hábitos que favoreça o de outros itens açucarados no futuro, ultraprocessados, que virão depois dos cereais — afirma Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e professora de Nutrição da universidade.


O mesmo “duplo padrão” acontece em relação ao leite em pó Ninho, indicado para crianças de 1 a 3 anos: a análise da Public Eye identificou açúcar adicionado em 72% das unidades em países de média e baixa renda – em média 2 g por porção de 25 g. O valor máximo foi encontrado no Panamá (5,3 g). Porém, no caso do Brasil, as amostras do leite em pó não tinham açúcar adicionado – o que é proibido no país.


Em nota enviada ao GLOBO, a Nestlé diz aplicar “os mesmos princípios de nutrição, saúde e bem-estar em todos os lugares”, mas que “variações nas receitas entre países dependem de vários fatores, incluindo regulamentos e disponibilidade de ingredientes”.


Além disso, afirma comercializar no Brasil versões do Mucilon com e sem açúcares adicionados (que tem um preço mais elevado nos mercados do país) e do leite Ninho apenas sem açúcar. Segundo a empresa, na última década a quantidade de açúcar nos seus cereais infantis caiu 11% em todo o mundo.


Rótulos dificultam identificação


Em relação aos cereais infantis, ainda que a prática da Nestlé não siga as orientações da OMS e do Ministério da Saúde, a legislação brasileira permite a adição do açúcar e sem nem estipular um limite, o que é criticado por especialistas.


— O ideal é que a legislação fosse atualizada, e que as empresas reduzissem consideravelmente a adição dos açúcares nos seus alimentos. A criança não pode ficar habituada a essa adição de açúcar, deixá-la “viciada” a alimentos muito doces. Sabemos que hipertensão, obesidade e diabetes são doenças crônicas que já começam a se apresentar entre o público infantil, o que não víamos tanto no passado — diz o nutrólogo Daniel Magnoni, presidente do Instituto de Metabolismo e Nutrição (IMeN).


Uma questão apontada pelos pesquisadores que dificulta essa identificação pelos consumidores é que as regras da Anvisa não obrigavam o detalhamento da quantidade de açúcar adicionado no rótulo. Ela podia vir dentro do total geral de “açúcares”, que engloba os que já são parte natural do alimento, como a lactose do leite, que não é nociva. Ou mesmo apenas dentro do guarda-chuva de carboidratos.


Por isso, ainda que na lista de ingredientes do Mucilon o termo “açúcar” apareça em segundo lugar, indicando que é o segundo item com mais quantidade, na tabela nutricional ele não costumava aparecer. No entanto, com as novas regras de rotulagem que passaram a ser implementadas desde 2022 no Brasil, tornou-se obrigatória a informação detalhada sobre o açúcar adicionado.


— A rotulagem é uma ferramenta de saúde pública muito importante. É direito, do ponto de vista legal, das pessoas terem informação sobre aquilo que elas estão consumindo. E do ponto de vista nutricional, é interessante ter esse detalhamento que possa embasar as escolhas. A mudança é muito bem-vinda — avalia Kraemer.


— A grande arma que a população tem contra isso é a informação. E informação quer dizer aprender a ler rótulo, principalmente observar os ingredientes daquilo que você está comprando — complementa Primi.


Outra parte do relatório da Public Eye, que contou com a participação de Bortoletto, da USP, analisou o marketing de produtos do tipo. Isso porque as autoridades de saúde consideram que a publicidade excessiva pode dissuadir o aleitamento materno, que é recomendado de forma exclusiva até os seis meses de vida e de forma conjunta à introdução de outros alimentos até os dois anos de vida.


— Analisamos as práticas de marketing em relação ao Mucilon e me chamou muito a atenção a diversidade de estratégias utilizadas. Uso de influenciadoras que dialogam com temas de maternidade para promovê-los, produção de materiais científicos com conflitos de interesse que são usados na publicidade — diz a pesquisadora da USP.


Compostos lácteos são problema no Brasil


Além disso, Boccolini, que atuou como representante das Américas para o último relatório da OMS sobre estratégias de marketing de alternativas ao leite materno, lembra que o Brasil tem um outro problema em relação ao avanço de produtos do tipo com açúcar adicionado: os compostos lácteos.


São itens que precisam ter apenas 51% da composição de derivados lácteos, porém o restante pode ser formado pela adição de diversas substâncias diferentes, entre elas açúcares como a sacarose e a maltodextrina, alerta o pesquisador da Fiocruz:


— Quando falamos de leite integral ou desnatado em pó e outros produtos que se apresentem como leite, é proibida a adição de açúcares, mas nos compostos lácteos é permitido. Mas eles são muitas vezes confundidos uns com os outros por serem comercializados com uma embalagem muito parecida visualmente. A rotulagem especificando vem apenas no canto inferior esquerdo. É uma estratégia que a indústria usa para baratear a produção, mas oferecendo um produto de qualidade nutricional inferior.



Fonte: O Globo

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