Uma das novidades mais aguardadas no 53º Congresso de Patologia Clínica/ Medicina Laboratorial, realizado em setembro no Rio de Janeiro, foi o lançamento do documento “Medicina diagnóstica inclusiva: cuidando de pacientes transgênero” [1]. O texto de 36 páginas é um posicionamento conjunto de três entidades: Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR).
A patologista Dra. Luisane Maria Falci Vieira, membro da SBPC/ML e coordenadora do projeto, afirmou que o documento não tem a pretensão de ser resolutivo. “Ele deve ser encarado como o início de uma discussão importante, e nós estamos abertos ao diálogo para melhorar, cada vez mais, o atendimento à população trans”, explicou.
“Na natureza, o binarismo não existe. Sempre vão surgir condições não binárias”, afirmou a Dra. Luisane.
A médica disse que mesmo com o avanço de pesquisas e possibilidades terapêuticas voltadas para as pessoas trans que desejam ter aspectos fenótipos do sexo com o qual se identificam, o atendimento de saúde a esta população ainda incita debates e dúvidas na comunidade médica.
A própria catalogação da transexualidade no Código de Doenças Internacionais (CID) passou por mudanças ao longo dos anos. A mais recente substituiu o termo “transexualismo” (que tem uma conotação patologizante) por “incongruência de gênero”. A transexualidade também saiu do espectro das doenças mentais e foi inserida no capítulo 17, que se refere às questões de saúde sexual. Apesar desses avanços para a descaracterização dos transgêneros como indivíduos que têm uma doença, a permanência de “incongruência de gênero” numa lista de doenças é questionada.
“Talvez a real infelicidade nessa história toda seja a própria nomenclatura do CDI. Mas a presença de incongruência de gênero na lista é pertinente, porque dessa forma é possível pensar e implementar abordagens médicas”, ponderou a endocrinologista Dra. Maria Izabel Chiamolera.
Segundo a Dra. Luisane, uma das motivações para a elaboração do posicionamento conjunto foi a percepção dessa insegurança em profissionais da saúde dentro dos laboratórios. De acordo com a médica, os impasses no atendimento laboratorial de transgêneros são comuns. Entre as dificuldades, estão preencher os dados sobre o sexo do paciente no sistema informatizado (muitos são desenvolvidos de forma binária), a questão do nome social, além de entraves com planos de saúde – convênios que estabelecem, por exemplo, que PSA deve ser feito apenas em homens e papanicolau somente em mulheres.
A Dra. Maria Izabel defende uma atenção diferenciada para pacientes trans na medicina diagnóstica, principalmente os que estão passando pelo processo de hormonização.
Dados apresentados no CSBPCML estimam que a prevalência mundial de transexualidade com disforia de gênero está em torno de 4,6 a cada 100.000 mil pessoas. Para a endocrinologista, a falta de informações sobre essa parcela da população no Brasil prejudica o avanço no atendimento e tratamento.
“Gênero, sexo e sexualidade são assuntos ainda envolvidos por muito preconceito. Infelizmente, o número de recusas no atendimento em saúde a população é alto”, disse. A Dra. Maria Izabel afirmou ainda que “devido ao medo dessa discriminação muitas pessoas trans nem procuram serviços de saúde”.
Esse distanciamento da população transgênero da saúde pode ser mais prejudicial ainda para as pessoas que resolvem iniciar a terapia hormonal. O procedimento consiste em manipular o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas para desenvolver características sexuais secundárias condizentes com a identidade de gênero do paciente, e amenizar as características sexuais secundárias biológicas. Como o tratamento à base de hormônios promove essa mudança radical no corpo, pessoas trans com disforia de gênero devem receber atenção especial na leitura dos exames – que podem apresentar alterações por causa da hormonização e não devido a doenças. O cuidado com os órgãos biológicos também deve ser considerado, já que mulheres trans continuam tendo próstata e homens trans, ovários. Devido ao impacto do tratamento hormonal no organismo, outros aspectos devem ser acompanhados de perto para prevenir ou evitar agravamento de doenças, como cardiovasculares e até osteoporose.
Para a Dra. Maria Izabel, “o serviço de saúde precisa estar preparado para isso”.
O Dr. Victor Alexandre Paulo Comeira, advogado ativista da causa LGBTQIA+, afirmou que a população trans é a que mais sofre com vulnerabilidades de todos os tipos. Ele elogiou a iniciativa do posicionamento conjunto da medicina diagnóstica inclusiva, devido ao potencial multiplicador desse tipo de ação.
“Nós devemos combater a discriminação negativa, quando pessoas são separadas e colocadas à margem de seus direitos, e incentivar a discriminação positiva: a separação de pessoas justamente para a garantia de seus direitos”, disse. O Dr. Victor também falou sobre a necessidade de qualificação dos médicos.
Para o advogado, nenhum profissional da saúde pode se recusar a prestar atendimento por desconhecer a causa trans. Segundo ele, o mínimo esperado seria fazer o acolhimento e o encaminhamento devido do paciente trans.
“Na dúvida sobre como agir, pense na dignidade da pessoa”, aconselhou.
Diante de todas essas complicações, a Dra. Luisane ressaltou a importância da parceria entre laboratórios e médicos na troca de informações. Para ela, também é imprescindível que o atendimento a uma pessoa trans seja feito por uma equipe multidisciplinar preparada.
“Todos devem ser capacitados, desde a telefonista até os microbiologistas e os médicos”, afirmou.
Fonte: Medscape
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