Cerca de 40 anos atrás, o jovem açougueiro István Wessel andava pelas ruas de Nova York quando se deparou pela primeira vez com uma carne escura, com aspecto de estragada na vitrine de um açougue.
— Eu passava na frente desse açougue nos anos 1980, via aquele monte de carne preta na vitrine, a câmara de maturação tinha uma janela que dava na rua, e pensava “quem é que vai comprar isso, aí?” — diz Wessel. — Mas é um açougue que está lá até hoje, há mais de 60 anos, se chama Lobel's.
Após o primeiro contato, ele se aprofundou mais nas técnicas de maturação da carne para desenvolvê-las no Brasil, já como um dos líderes da empresa de carnes que leva o sobrenome da família e se tornou uma das maiores do país. Entre essas técnicas, ele conheceu o dry aged, processo no qual as peças são expostas a condições específicas de temperatura, circulação de ar e umidade por um determinado período — normalmente de 15 a 90 dias. Dessa forma, a carne perde parte a umidade e passa por reações naturais que intensificam o seu sabor, a tornam mais macia e tenra.
De crítico, Wessel virou especialista e viu crescer a demanda pelas carnes maturadas em diferentes restaurantes do país nos últimos tempos.
— A régua da qualidade subiu muito, e na esteira dessa demanda por qualidade acabou entrando o dry aged — conta Wessel. — Por ser uma novidade no Brasil e em função de trazer mais qualidade a carne e por ser mais exótico, o Instagram divulga o dry aged com muita velocidade e acabou vindo para o mercado.
A técnica surgiu há cerca de 80 anos, nos Estados Unidos. Os açougueiros perceberam que deixar a carne em um gancho entre 15 e 30 dias deixava a carne com um gosto e maciez melhor. Com o tempo, adaptaram a técnica e acabou se disseminando pelas churrascarias.
Como fazem essa carne? É saudável comer?
Para realizar esse processo na carne é necessário um controle constante do maquinário. Normalmente as peças são penduradas em câmaras refrigeradas, entre -1°C e 4°C, e com umidade de 75% a 85%. Já o tempo vai de acordo com o gosto. Mesmo que o processo não mude o perfil nutricional, deve-se ter em mente que quanto mais dias na maturação a seco, mais ela perde líquidos e mais intenso é o sabor, a doçura e a maciez da carne.
Outro ponto citado por Wessel como “macete” é somente usar peças com osso — como a bisteca ou costela ribeye — ou se for usar sem osso — como o filet mignon — ficar atento ao tempo de maturação, pois secam mais rapidamente. Outra dica é dar um espaço entre elas para que ocorra a circulação correta do ar em todas as partes. Se isso não acontecer, as carnes podem estragar.
Com a técnica correta, a peça vai desenvolver uma crosta escura, com um aspecto pouco atrativo, que é removida para revelar uma carne maturada com coloração, cor e aroma intensos, além da maciez desenvolvida ao longo do processo.
Outra diferença das carnes dry aged em comparação com aquelas que não são produzidas com a técnica está no sabor. As maturadas tendem a ser mais adocicadas e macias, como se estivessem amanteigadas ou até amendoadas. A intensidade dessas características depende do tempo que durou a maturação.
Os especialistas ressaltam ainda que uma carne com um sabor mais intenso pode não ser a melhor para o paladar de todos.
Esteticamente, a carne pode não ser tão atrativa quando vista no açougue. Entretanto, se o dry aged for seguido corretamente, não há risco no consumo, já que o processo é uma reação natural, segundo a doutora em Ciência e Tecnologia de Alimentos Denise Perdomo, que é professora no Instituto Federal de Ciências e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).
— É algo que acontece na própria carne a partir do "rigor mortis". O animal morre, aquelas enzimas que estão ali, dentro das células, são liberadas e aí elas começam a agir sobre a fibra muscular. Então, há um processo enzimático entre enzimas proteolíticas (que quebram proteínas) e lipolíticas (que quebram gordura) — comenta a professora.
Por esse motivo ela fica sobre um rígido controle, assim esse processo de maturação ocorre sem a proliferação de bactérias ruins para o consumo.
Mas, se você quiser experimentar uma peça dessas, a melhor dica é estar preparado para abrir a carteira. Devido ao controle rígido do processo, ao tempo de maturação e a seleção das peças — somente cortes nobres —, essas carnes podem ser três ou quatro vezes mais caras do que as mesmas peças normais, a depender do tempo em maturação. O preço do quilo pode chegar a 900 reais.
A única indicação de Denise é que, caso você não seja um especialista, evite tentar por conta própria repetir o processo em casa. Devido a todas as variáveis que devem ser seguidas, seria um risco contaminar o alimento “porque você não tem nenhum controle do processo”.
— Qualquer umidade acima do parâmetro estabelecido para você manter esse ar seco pode proporcionar a multiplicação de bolores. Os bolores são produtores de micotoxinas, que não têm um efeito agudo à saúde. Ou seja, eu não vou comer algo com micotoxina e imediatamente já desenvolver uma doença, mas elas têm um efeito crônico, a longo prazo na saúde humana. E essas micotoxinas são tóxicas, cancerígenas para o rim e para o fígado.
Um exemplo é a conservação, para uma carne dry aged não é indicado o congelamento usado para carnes em geral, já que poderia afetar no processo enzimático, ocasionando uma textura e sabor diferente do esperado.
— O processo de maturação das carnes propicia a formação de pH ácido, tornando o descongelamento desnecessário. A refrigeração já é suficiente para retardar o crescimento microbiano. Além disso, o congelamento leto (aplicado no freezer) pode induzir a formação de cristais de gelo na carne, que pode ser ruim, pois afetará a textura dela. Sendo que na maturação, o indicado é a melhora da maciez da carne — explica Denise.
Fonte: O Globo
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