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Combater a autoimunidade no trato gastrointestinal: loucura ou ciência?

Paul McDougall abriu a porta da geladeira e mostrou um estoque de alimentos saudáveis pensado para ele, a mulher e seus dois filhos pequenos.

“Voltei a comer pão e algumas outras coisas, porque meu quadro está, no geral, sob controle”, disse o produtor de televisão de 46 anos, que mora em Toronto, e foi diagnosticado com tireoidite de Hashimoto há quatro anos.

O diagnóstico explicou muita coisa a Paul. A esposa dele, Maria, contou que ele vivia em uma “montanha-russa emocional” de fadiga e depressão.

“Quando recebi o diagnóstico fiquei confuso”, contou. “Para alguém que produz programas de TV ao vivo, isso é péssimo. Estávamos nos preparando para as Olimpíadas, e chegou a um ponto em que eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Parecia que eu tinha batido a cabeça e estava com uma concussão.”

“O sofrimento emocional e o impacto eram tão grandes que nos perguntamos se ele poderia continuar trabalhando”, lembrou Maria, contando que “o mais angustiante era quando ele simplesmente desandava a chorar”.

Em vez de seguir o método convencional para tratar o transtorno autoimune, Paul escolheu um caminho alternativo – uma dieta de eliminação associada a suplementos.

A medicina alternativa adotou tratamentos não medicamentosos para doenças autoimunes da tireoide. Uma das dietas mais prescritas é a Dieta do Protocolo Autoimune (AIP, sigla do inglês, Autoimmune Protocol Diet), uma versão ainda mais rigorosa da dieta Paleo ou “ancestral” sem grãos.

Nem a American Association of Clinical Endocrinologists (AACE) nem a American Thyroid Association (ATA) aprovam a dieta. Então, o que os médicos podem dizer para os pacientes que pretendem dar uma chance para essa dieta, seja porque não querem tomar medicamentos ou porque, apesar do tratamento convencional, ainda apresentam sintomas?

Loucura ou ciência?

A teoria por trás da AIP é que os sintomas autoimunes – e possivelmente até os anticorpos – podem ser reduzidos pela eliminação de certos alimentos da dieta. O objetivo é diminuir a inflamação, que é reconhecida como o mecanismo patológico subjacente à autoimunidade.

Mas a dieta não é fácil. A lista de alimentos a serem evitados é longa: todos os grãos, legumes, laticínios, ovos, café, álcool, nozes, sementes, açúcares refinados ou processados e óleos e aditivos alimentares.

Então, é loucura embarcar em uma dieta tão hercúlea, que não tem o apoio dos especialistas? Veja uma revisão sobre a ciência por trás da AIP.

Na raiz da dieta está a teoria de que a disfunção da barreira intestinal, ou intestino permeável, permite a entrada de toxinas no sistema, desencadeando inflamação e autoimunidade. Apesar de vista com ceticismo, a “disfunção da barreira intestinal” tem despertado um interesse crescente na medicina.

Na verdade, uma pesquisa deste termo no PubMed revela cerca de 450 publicações – a primeira de 1993. Um crescente corpo de pesquisa associa a permeabilidade intestinal a uma grande quantidade de patologias, como doença inflamatória intestinal, esclerose múltipla, diabetes, doença cardiovascular, transtorno do espectro autista, depressão, doença de Parkinson e demência.

Apesar do reconhecimento cada vez maior de que o intestino permeável desencadeia muitas doenças, inclusive autoimunidade, surpreendentemente há pouca ciência sobre como resolver o problema. Embora a restauração da microbiota intestinal saudável seja considerada fundamental, os médicos tradicionais ainda debatem a melhor forma de alcançar este objetivo.

Para os “médicos não tradicionais”, a solução é a AIP.

Várias versões da AIP foram defendidas por médicos autores dos livros mais vendidos, muitos dos quais têm histórias pessoais de doenças autoimunes que não responderam à alopatia.

A Dra. Amy Myers, médica emergencista, é uma delas. A Dra. Cynthia Li, internista, é outra. Ambas foram desviadas da medicina tradicional pela doença autoimune da tireoide, que não respondeu ao tratamento.

A Dra. Myrto Ashe, é médica de família na Califórnia, e seguiu um caminho semelhante quando a doença do filho não melhorou.

“Para os médicos tradicionais que, como nós, foram ‘para o outro lado’, quase sempre é porque eles mesmos tiveram ou algum membro da sua família teve uma doença que não poderia ser resolvida com os recursos que conhecemos”, disse a médica.

O pilar da dieta AIP é eliminar a gliadina, um componente do glúten que pode ser encontrado no trigo, centeio, cevada e triticale, contido em inúmeros alimentos processados, que é sabidamente difícil de ser digerido.

“O glúten danifica o intestino toda vez é ingerido”, explicou a Dra. Myrto, citando vários estudos que associam a liberação de zonulina induzida por gliadina à disfunção da barreira intestinal. O dano intestinal induzido pelo glúten é bem reconhecido em pessoas com doença celíaca, embora haja evidências de que causa lesão transitória em pessoas sem doença celíaca, acrescentou ela.

“Isso ocorre principalmente porque temos uma dieta pior e, portanto, menos bactérias benéficas do que costumávamos ter”, explicou ela. “Portanto, faz sentido que, embora nossos ancestrais pudessem consumir muito glúten impunemente, nós não podemos.”

A maior parte do que se sabe sobre o glúten e o intestino vem do Dr. Alessio Fasano, da Harvard Medical School, que acredita que algumas pessoas com autoimunidade poderiam se beneficiar da eliminação do glúten.

“Estou convencido, com base nos dados publicados na literatura, de que existem subgrupos de pessoas afetadas por doenças autoimunes, como diabetes tipo 1, esclerose múltipla, artrite reumatoide, etc., nos quais o glúten pode desempenhar um papel patogênico ao induzir a liberação de zonulina, a molécula que aumenta a permeabilidade intestinal”, afirmou.

“No entanto, ao contrário de pacientes com doença celíaca, dentre os quais 100% se beneficiam de uma dieta sem glúten, apenas uma certa quantidade de pessoas com autoimunidade pode se beneficiar da dieta. Não temos biomarcadores validados para sensibilidade ao glúten não celíaca, por isso é impossível encontrar o subgrupo que se beneficiaria da dieta”.

A Dra. Myrto e outros defensores da AIP acreditam que, ao curar o intestino e restaurar a microbiota saudável, a dieta pode ajudar muitos pacientes com autoimunidade a reduzir seus medicamentos ou abandoná-los completamente.

O Dr. Alessio tende a concordar. “Os resultados são principalmente anedóticos, mas a melhora dos sintomas, a diminuição dos títulos de autoanticorpos e a desaceleração da progressão do processo autoimune foram todos descritos”, ele observou.

Mas, a Dra. Myrto acredita que a dieta não deveria ser a única abordagem.

“Para um paciente com Hashimoto sintomática, eu iniciaria com medicação – levotiroxina ou possivelmente tireoide suína natural desidratada – e depois daria alguns meses para o paciente passar por um programa abrangente de medicina funcional que envolva dieta, mudança no estilo de vida e suplementos, para então voltar a avaliar o que precisa ser feito com a dose do medicamento ao longo do tempo. Outro dia atendi um paciente que ficou pasmo com seus níveis de anticorpos anti-peroxidase tireoidiana desaparecendo”.

Médicos tradicionais continuam céticos

A maioria dos médicos tradicionais que tratam distúrbios da tireoide hesita em adotar totalmente a AIP, afirmando que não há evidências sobre os níveis de melhora no hormônio estimulante da tireoide e de anticorpos da tireoide.

A American Thyroid Association afirmou: “Atualmente, não há um estudo controlado que tenha sido publicado mostrando que a ‘dieta do protocolo autoimune’ pode reverter a doença de Hashimoto.”

O Dr. John Sistrunk, presidente da rede estadual de doenças da tireoide da AACE, tem uma opinião semelhante. “Embora as evidências científicas atuais não embasem a adesão estrita a uma dieta de ‘protocolo autoimune’ para melhorar a tireoidite de Hashimoto – clinicamente, a melhora dos hábitos alimentares provou efeitos em outros processos patológicos e na qualidade de vida”, afirmou.

O Dr. Karl Nadolsky médico osteopata e presidente da rede estadual de doenças da nutrição e obesidade da AACE, disse que, embora tenha visto pacientes com tireoidite de Hashimoto e hipotireoidismo autoimunes que foram “ao extremo” de aderir à dieta AIP, “nem eu nem nenhum dos meus colegas tivemos pacientes bem sucedidos em reduzir os níveis de anticorpos em um nível clinicamente significativo ou que não precisassem de reposição de hormônio tireoidiano, se já estivessem em uso. Dito isso, certamente encorajamos melhores hábitos alimentares que incluam mais vegetais, frutas, legumes, leguminosas, oleaginosas, sementes, peixes, aves e carnes não processadas, junto com exercícios, higiene do sono e redução do estresse, pois são definitivamente terapias baseadas em evidências para todos, incluindo aqueles com Hashimoto”.

Apesar do ceticismo em relação à AIP, os dois grupos reconhecem cautelosamente, que pode haver algum benefício para a tireoide da eliminação do glúten.

“Alguns dados mostram que no pequeno subconjunto de pessoas com doença celíaca e de Hashimoto, a dieta sem glúten melhorará os níveis de anticorpos relacionados à tireoide”, disse Dr. Karl, reconhecendo que o tópico merece mais pesquisas.

Quando Paul e sua família se sentam para o jantar, a mesa tem uma mistura de vegetais, carne e pratos com peixe, além de um pouco de glúten. Embora ele tenha entrado em uma dieta estritamente sem glúten no momento do diagnóstico, admite que voltou a consumir desde que se sentiu melhor. A refeição é o combustível que alimenta seu estilo de vida fisicamente ativo e a rotina profissional acelerada – que haviam sido prejudicados no auge de seus problemas com a tireoide.

Tanto ele como Maria reconhecem que a medicação ainda poderá ser usada no futuro para seu quadro de Hashimoto.

“O endocrinologista diz que chegará o momento. Estou lentamente causando um pouco de dano o tempo todo, que não é recuperável. É como um carro com um motor ruim.”

Mas, por enquanto, ele voltou a andar de bicicleta, correr e conciliar a rotina com uma grande promoção no emprego – e a se sentir bem.

Fonte: Medscape

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