A ideia é simples: com o auxílio de métodos de imagem, como os raios-X ou a tomografia, médicos guiam fios e cateteres por vasos sanguíneos até chegar a um local do corpo que está doente para realizar algum tipo de intervenção.
Essas técnicas, relativamente novas na medicina, são usadas hoje para tratar as mais variadas doenças — de infarto e AVC a próstata inchada, dor e até alguns tipos de câncer.
Alguns métodos permitem ainda corrigir disfunções durante a gestação, em bebês que ainda estão na barriga.
Aliás, o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 79 anos, foi submetido na quinta-feira (12/12) a um procedimento do tipo — a embolização — para evitar novas hemorragias e hematomas no crânio após sofrer um acidente doméstico e bater a cabeça.
Graças aos avanços na tecnologia, a chamada radiologia intervencionista é cada vez mais usada como uma ferramenta terapêutica minimamente invasiva.
Por meio de pequenos furos na pele, ela permite lidar com enfermidades que, muitas vezes, antes necessitavam de uma cirurgia de larga escala, de peito aberto, cuja frequência de complicações costuma ser mais alta, com uma recuperação lenta e custosa.
Entenda a seguir como essa especialidade evoluiu nos últimos anos — e quais são as principais limitações e dificuldades de acesso que ela apresenta hoje.
Uma viagem por veias e artérias
O médico Rodrigo Gobbo, diretor do Centro de Medicina Intervencionista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, diz que o nome "radiologia intervencionista" surgiu em meados dos anos 1970.
"Nessa época, um radiologista americano chamado Alexander Margulis profetizou que essa área permitiria fazer não apenas diagnósticos, mas também seria capaz de realizar procedimentos minimamente invasivos. E foi isso que aconteceu nas décadas seguintes", contextualiza ele.
Naturalmente, as primeiras intervenções minimamente invasivas foram feitas na cardiologia — afinal, veias e artérias são usadas como as vias para a passagem dos cateteres.
"Hoje, a cardiologia intervencionista pode ser dividida em dois grandes grupos. Primeiro, no tratamento da doença arterial coronária, que é o problema de saúde que mais mata no mundo", explica a médica Claudia Maria Rodrigues Alves, do Hcor, também na capital paulista.
"O segundo grupo são as doenças estruturais do coração, como as disfunções em válvulas cardíacas", complementa ela.
As primeiras intervenções dessa especialidade envolviam cateteres e balões.
Em resumo, os especialistas inseriam um fio por uma veia ou uma artéria. Ele era guiado até um local que apresentava uma placa de gordura importante, que atrapalhava ou chegava até a bloquear a passagem de sangue. Daí eles inflavam um balão, para "esmagar" essa placa e restabelecer a circulação.
Com o passar do tempo, essa técnica evoluiu com o surgimento dos stents. Basicamente, eles são pequenas estruturas metálicas ou bioabsorvíveis.
Esse material é levado até a região que apresenta o bloqueio — como as artérias coronárias, que irrigam o coração, por exemplo — e se abrem ali para garantir a passagem do sangue novamente.
Esse método permitiu substituir na grande maioria dos casos os procedimentos mais antigos, como as famosas pontes de safena, uma cirurgia que envolvia abrir o peito do paciente, expor o coração, e costurar uma veia ali para garantir a passagem do sangue.
"No caso da síndrome coronariana aguda, o infarto do miocárdio, hoje em dia nem se cogita levar o paciente para a cirurgia", conta Alves.
"O tratamento percutâneo [chamado popularmente de cateterismo] revolucionou a doença e permitiu reduzir a mortalidade. Quanto mais precocemente ele é feito, melhores são os resultados", complementa ela.
Um princípio parecido começou a ser usado mais recentemente para lidar com alguns casos de acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, quando há o bloqueio de um vaso sanguíneo na cabeça.
Na chamada trombectomia mecânica, médicos guiam os cateteres até a região afetada do cérebro, perfuram a placa de gordura, abrem uma estrutura metálica e "arrastam" para fora do corpo o material que provocou o entupimento.
O segundo grupo de intervenções citado por Alves envolve as doenças estruturais do coração.
Hoje em dia, os profissionais de saúde conseguem trocar as válvulas cardíacas — estruturas que separam átrios e ventrículos, as câmaras do músculo cardíaco — sem a necessidade de grandes cortes ou suturas.
Uma nova válvula é introduzida e instalada por meio de cateteres, a partir de um único furo, geralmente feito na virilha ou no braço.
"As vantagens desses tratamentos são a rápida recuperação, uma menor necessidade de transfusão sanguínea e uma diminuição do risco de comorbidades, como insuficiência renal. Todos esses pontos são muito importantes para o paciente", lista Alves.
Durante a gravidez em recém-nascidos
Algumas das técnicas da radiologia intervencionista são aplicadas até mesmo durante a gestação — e permitem corrigir malformações em bebês que ainda estão na barriga da mãe.
O cardiologista e ecocardiografista Gustavo Fávaro, coordenador do setor de Ecocardiografia e Cardiologia Fetal do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo, explica que, durante o desenvolvimento, algumas crianças não desenvolvem as válvulas do coração como esperado.
"Esses bebês podem nascer com o pulmão muito machucado e numa situação de emergência", destaca ele.
Para evitar isso, é possível partir para a intervenção fetal. "Por meio de uma agulha, conseguimos chegar ao coração do feto e, com o auxílio de um cateter e um balão, abrimos um buraquinho na região que apresenta o problema", detalha Fávaro.
Durante o procedimento, um especialista em medicina fetal deixa o bebê numa posição adequada. Na sequência, o cardiologista insere a agulha no abdômen materno, ultrapassa o útero, fura o tórax do bebê e realiza a intervenção nas câmaras cardíacas.
"Precisamos ser muito precisos, pois cuidamos de estruturas de dois ou três milímetros", calcula ele.
Alguns procedimentos minimamente invasivos também podem ser feitos após o parto, nos primeiros dias de vida do recém-nascido.
Fávaro avalia que essa área da medicina avançou tanto que chegou praticamente a um mundo ideal.
"Eu não vislumbro grandes inovações para os próximos anos, porque realmente estamos numa situação muito boa", entende ele.
"O que precisamos agora é fazer com que mais pacientes tenham a chance de receber esse tratamento. Há a necessidade de melhorar o diagnóstico de problemas cardíacos durante a gestação", pontua o médico.
Acesso inédito aos tumores
Além das moléstias que afetam o coração, a radiologia intervencionista se expandiu por diversas outras áreas da saúde.
Um exemplo disso é o câncer. "Hoje podemos navegar pelos vasos e entregar medicações em altas doses no local onde está a doença", cita Gobbo.
Isso permite potencializar o efeito do remédio, já que praticamente a dose inteira dele chega até o lugar onde precisa agir — quando um fármaco é ingerido ou injetado, ele passa por diversos processos de metabolização, e parte do princípio ativo se perde pelo caminho.
"Também é possível fechar artérias que estão nutrindo o tumor, para 'matá-lo' de fome e de falta de oxigênio", complementa o médico.
Há diversas outras possibilidades aqui, como, por exemplo, levar por meio de cateteres partículas radioativas para o interior do tumor, para que elas atuem apenas nas células doentes — e poupem as unidades saudáveis do organismo.
Também existem outros equipamentos usados em procedimentos minimamente invasivos que conseguem congelar ou aquecer o tumor, outras maneiras de destruí-lo.
"Todos esses tratamentos atuam de forma sinérgica com as demais terapias, como a quimioterapia, a radioterapia e a imunoterapia", complementa Gobbo.
Para o médico, a radiologia intervencionista está se tornando "um quarto pilar no tratamento contra o câncer".
"Mas é preciso lembrar que, numa doença tão complexa como essa, nunca vai existir uma panaceia, ou um único remédio que vai curar tudo. Precisamos pensar de forma personalizada, no melhor tratamento para cada paciente, para aliar tecnologias e compor estratégias multidiscplinares", pondera ele.
Para o médico Lucas Monsignore, presidente eleito da Sociedade Brasileira de Radiologia Intervencionista e Cirurgia Endovascular (Sobrice), a abordagem minimamente invasiva traz uma série de vantagens.
"Uma cirurgia convencional de retirada de tumor leva cerca de quatro horas. Já uma intervenção guiada por imagem costuma demorar uma hora e meia", estima ele.
"Numa operação, o paciente precisa ficar internado por pelo menos três ou quatro dias. No procedimento por cateteres, ele muitas vezes recebe alta no mesmo dia", complementa.
Monsignore destaca que a abordagem minimamente invasiva também está relacionada a menos sangramentos e uma menor necessidade de transfusões de sangue.
E tudo isso, segundo ele, traz um impacto nos custos.
"Quando eu olho apenas o tratamento, a medicina intervencionista ainda tem um preço mais alto por causa dos materiais utilizados", diz ele.
"Mas, quando você coloca na balança o tempo de internação, as complicações cirúrgicas e os dias de afastamento do trabalho, os procedimentos minimamente invasivos ficam mais baratos", argumenta o especialista.
Dor, acidentes, próstata inchada…
Francisco César Carnevale, médico-chefe do Serviço de Radiologia Intervencionista do Instituto de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas de São Paulo, destaca a versatilidade dos procedimentos minimamente invasivos.
"Onde o cateter consegue chegar, nós podemos atuar. Eu posso ir até a ponta do dedinho da mão sem fazer um corte", diz ele.
Ainda que veias e artérias sejam o principal caminho para mover os cateteres pelo organismo, é possível utilizar outros meios.
Uma alternativa são os vasos linfáticos, que fazem parte de nosso sistema imunológico. Outras envolvem agulhas inseridas diretamente no local de interesse — sempre com o auxílio dos exames de imagem, como a radiografia, a tomografia, a ressonância magnética ou o ultrassom.
Além das doenças cardíacas, do câncer e dos problemas na gestação, a radiologia intervencionista pode ser usada para "silenciar" nervos excessivamente sensíveis, que causam muita dor numa pessoa.
"Imagine também o caso de um acidente, em que a vítima apresenta um sangramento importante no fígado. Em vez de abrir a barriga, eu posso fazer um cateterismo. Por meio de uma tomografia ou um ultrassom, vejo onde está sangrando e entupo a passagem de sangue por aquela região", exemplifica Carnevale.
"Trata-se de uma agressão menor ao corpo e um tratamento muito mais eficaz", avalia o especialista.
O próprio Carnevale, aliás, desenvolveu um método minimamente invasivo para tratar um problema muito comum em homens com mais de 50 anos: a hiperplasia prostática benigna.
Essa condição, que não tem nada a ver com o câncer, é marcada pelo inchaço da próstata. Com isso, a glândula "estrangula" a uretra e dificulta a passagem de urina. Muitos indivíduos acometidos pelo quadro apresentam uma grande dificuldade de ir ao banheiro para urinar.
"Os tratamentos tradicionais, que funcionam muito bem, retiram cirurgicamente o 'miolo' da próstata. O problema é que eles são agressivos, causam sangramentos, exigem anestesia geral e aumentam o risco de impotência sexual e incontinência urinária", observa ele.
"Nós desenvolvemos aqui no Hospital das Clínicas o método de embolização da próstata. Por meio da radiologia intervencionista, eu consigo obstruir a passagem de sangue para algumas regiões internas da glândula."
Fechar esses vasos sanguíneos não afeta em nada a circulação local — e traz a vantagem de deixar a próstata mais "macia". O resultado disso é um aperto menor da uretra, aliviando a saída da urina.
"O procedimento é feito com anestesia local. O paciente chega de manhã e vai embora no começo da tarde, andando por conta própria, sem risco de disfunção erétil e incontinência urinária", informa Carnevale, que recentemente se tornou o primeiro médico da América Latina a receber uma medalha da Sociedade Europeia de Intervenção Radiológica e Cardiovascular pelo desenvolvimento desse tipo de embolização.
Limitações e barreiras
Ainda que a medicina intervencionista traga uma série de pontos positivos, os médicos ouvidos pela BBC News Brasil citaram algumas barreiras no uso das técnicas.
"Para determinadas doenças, especialmente o câncer, ainda existem limitações no uso da radiologia intervencionista para os casos mais avançados", diz Monsignore.
"Em pacientes com insuficiência renal ou que usam alguns tipos de marcapasso, há também contra-indicações a esses procedimentos", complementa ele.
No caso da doença nos rins, o grande problema é que os médicos precisam injetar o contraste feito de iodo nos vasos sanguíneos do paciente para poder enxergar as estruturas do corpo nos exames de imagem.
E esse iodo em excesso pode representar uma carga extra de trabalho para rins que já não estão funcionando adequadamente.
No entanto, para os especialistas, a principal limitação para a maior popularização da radiologia intervencionista é a falta de acesso, especialmente na saúde pública.
"As técnicas estão disponíveis, mas precisamos de mais hospitais equipados e médicos capacitados para realizar essas intervenções", acredita Carnevale.
"Não tenho dúvida de que os procedimentos minimamente invasivos são a Medicina do presente e do futuro", garante ele.
"Estamos trabalhando agora para mostrar que a incorporação dessas técnicas é algo custo-efetivo e pode significar uma economia de recursos no Sistema Único de Saúde", conclui Gobbo.
Fonte: G1
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