Pela primeira vez, a cirurgia bariátrica foi tema no 37º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado entre 9 e 12 de outubro, no Rio de Janeiro. Os médicos debateram o papel do psiquiatra na equipe multidisciplinar, responsável pelo pré e pós-operatório deste tipo de procedimento, que vem aumentando exponencialmente no país. Os dados apresentados no congresso mostram que foram realizadas 424.682 cirurgias bariátricas no Brasil entre 2011 e 2018, representando um aumento de 84,7% no número de procedimentos nesse período.[1]
Esse crescimento acompanha a escalada de casos de obesidade, classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma epidemia global. No Brasil, os casos mais graves (de obesidade mórbida) aumentaram 255% entre 1974 e 2003. [2] E, nos últimos anos, continuam crescendo. Hoje, 13,6 milhões de brasileiros podem ser elegíveis para a cirurgia bariátrica, por apresentarem índice de massa corporal (IMC) > 40 kg/m2 ou IMC > 35 kg/m2 associado a comorbidades.
Nos últimos anos, as discussões sobre cirurgia bariátrica priorizaram aspectos clínicos e nutricionais, em detrimento do fator psicológico, que é fundamental nesse processo.
A atuação do psiquiatra é imprescindível, tanto no pré como no pós-operatório. Antes da cirurgia é o psiquiatra quem faz a avaliação do quadro mental do paciente para determinar se ele está apto para o procedimento ou se a cirurgia pode trazer mais riscos que benefícios. Durante apresentação, a Dra. Maria Francisca Mauro, especialista em psiquiatria pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), lembrou que a obesidade traz uma série de agravos (apneia, inflamação, entre outros) que impactam diretamente no sistema cognitivo.
“É preciso entender que a própria obesidade tem fatores de influência na cognição naturalmente. Deve-se considerar isso, para avaliar se a cirurgia terá impacto positivo ou negativo no sistema cognitivo”, completou.
A médica ressaltou que pacientes com obesidade mórbida têm risco de depressão cinco vezes maior. A prevalência do transtorno do déficit de atenção e/ou hiperatividade (TDAH) também é maior nesta população, assim como o transtorno afetivo bipolar (TAB) e o transtorno de personalidade borderline.
O Dr. Glauber Higa Kaio, coordenador de psiquiatria do Laboratório de Estudos de Transtornos Alimentares e Obesidade (LATOS), salientou, por sua vez, que há situações em que a cirurgia bariátrica é contraindicada. Ele citou os casos de transtorno mental descompensado; limitação intelectual em pacientes sem suporte familiar; e impossibilidade ou recusa de acompanhamento pela equipe multidisciplinar.
“O psiquiatra tem de avaliar o histórico de tratamentos do paciente, a motivação dele, checar se ele seguiu a dieta pré-operatória e se faz uso de estimulantes, como cafeína. É fundamental conversar com familiares e amigos para obter um quadro preciso sobre o paciente”, explicou.
O Dr. Glauber lembrou ainda que o psiquiatra deve saber lidar com a pressão do paciente, e até do cirurgião, antes de dar a palavra final sobre a recomendação ou não para a cirurgia. Entre os aspectos a serem observados antes da cirurgia, há uma série de psicopatologias alimentares, como o transtorno de compulsão alimentar, o beliscamento, a síndrome do comer noturno, o comer emocional e a adição por comida.
“A combinação de duas ou mais psicopatologias alimentares pode dificultar a perda de peso e impactar no período pós-cirúrgico”, disse.
Os especialistas esclareceram que na maioria dos casos a cirurgia bariátrica pode, no primeiro momento, ajudar na remissão de problemas como apneia e dislipidemia. O procedimento também pode propiciar melhora cognitiva nos domínios da capacidade executiva e memória. Mas eles advertiram que o acompanhamento do pós-operatório por toda a equipe multidisciplinar é fundamental, porque são muito comuns os casos de recuperação do peso.
“Cada vez mais se discute o impacto da recuperação do peso na impulsividade do paciente”, lembrou a Dra. Maria Francisca Mauro. Ela explicou que a cirurgia bariátrica não se resume a reduzir o tamanho do estômago. Há também um impacto metabólico, que desencadeia reações hormonais.
“Há mudanças de absorção nutricional e vitamínica, o paciente pode desenvolver sistemas compensatórios, como jejum e bulimia, e até os processos cognitivos podem ser afetados. É preciso acompanhar constantemente esse paciente”, disse a médica.
A recomendação de acompanhamento multidisciplinar regular e de longo prazo foi reforçada pela nutricionista Fernanda Mattos, do Programa de Obesidade e Cirurgia Bariátrica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da UFRJ. “A cirurgia não finaliza o tratamento da obesidade. Muito pelo contrário, a parte mais difícil começa depois da cirurgia”, ponderou. Além da dieta rigorosa nos primeiros dias depois da cirurgia, a nutricionista lembra que o paciente precisa modificar seus hábitos e passar por uma reeducação alimentar.
“Eu ensino as pessoas a mastigar. O tamanho do estômago será reduzido significativamente. A mastigação ajuda a evitar engasgos e aquela sensação de entalamento”, descreveu. A nutricionista observou ainda que não basta reduzir a quantidade de comida, mas também é necessário modificar a qualidade da alimentação.
Longe de querer apresentar respostas definitivas sobre o assunto, os palestrantes ressaltaram que esse é um campo que ainda precisa ser muito explorado, e que há muitas perguntas sobre o impacto cognitivo da cirurgia bariátrica a serem respondidas, como, por exemplo, em que casos a redução do estômago ajuda a contornar transtornos mentais pré-existentes, e em que situações a cirurgia pode desencadear outros transtornos alimentares especialmente quando o paciente volta a ganhar peso?
Para mitigar possíveis efeitos negativos da cirurgia bariátrica, os palestrantes foram unânimes no caminho apontado: É preciso envolver todos os profissionais (clínico, cirurgião, psicólogo, psiquiatra, nutricionista) em um trabalho conjunto e interligado, desde o pré-operatório (quando é necessária uma avaliação criteriosa) até o pós-operatório, quando o acompanhamento psiquiátrico será decisivo para o sucesso do tratamento.
Fonte: Medscape
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