Na segunda quinzena de abril, veio a público um estudo francês sobre possíveis efeitos protetivos do tabagismo contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2). De acordo com essa pesquisa, realizada com pacientes que testaram positivo para a doença, apenas 5% dos infectados eram fumantes. O estudo foi duramente criticado por conter vários erros, como a exclusão de pacientes internados na UTI, e por desconsiderar que cerca de 20% dos infectados eram profissionais de saúde com baixa prevalência de tabagismo, entre outras limitações.
O fato é que, baseado nesse artigo, surgiu uma hipótese de que a nicotina protegeria contra a Covid-19 por diminuir a presença do receptor ACE2, usado pelo Sars-CoV-2 para invadir as células da mucosa respiratória. Fato absolutamente não comprovado.
Ainda que a hipótese da ação “positiva” da nicotina fosse confirmada por meio de estudos robustos, sua utilização como forma de prevenir uma possível infecção só seria razoável se feita por meio de medicamentos já disponíveis no mercado, que visam suprimir os sintomas de abstinência no tratamento do tabagismo. Jamais haveria da classe médica a recomendação para consumo do cigarro ou de seus equivalentes, como cigarro eletrônico, sabidamente nocivos à saúde.
No entanto, o argumento a favor da nicotina parece ser bem questionável, visto que fumantes têm maior risco de infecção pelo vírus influenza (da gripe), além de por outros da família coronavírus, como o Sars e Mers, que usam o mesmo receptor (ACE2) para invadir a células.
Uma pesquisa recente realizada na Austrália revelou que fumantes apresentavam concentrações maiores de receptores de ACE2 em comparação com os não fumantes. A diferença aumentava ainda mais quando os tabagistas tinham comprometimento respiratório por Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) relacionada ao tabagismo, o que favorece a entrada do vírus no organismo.Veja também
Estatísticas das internações na China apontam que 50% dos fumantes infectados pelo coronavírus estão mais sujeitos a serem intubados, necessitando dos cuidados de unidades de terapia intensiva. Dados de internações de mais de 8.000 pacientes na China, Estados Unidos e Europa confirmam risco maior de mortalidade entre fumantes. A Turquia também detectou que 45% dos internados por Covid-19 eram tabagistas. Isso acontece porque o tabaco inflama as mucosas das vias aéreas e prejudica os mecanismos de defesa do corpo, fazendo desse grupo um alvo fácil para infecções.
É possível fazer uma analogia entre os danos do cigarro e os da Covid-19. O tabagismo provoca estragos no decorrer de anos, enquanto coronavírus desencadeia em poucos dias, para cerca de 20% dos infectados, um grave processo inflamatório, que muitas vezes se complica com formação de coágulos, disfunção cardíaca e renal.
No caso da Covid-19, fumar — que, por si só, já é um fator de risco para muitas doenças, pode contribuir para o agravamento da infecção. O fato é que a pandemia está em curso. Até a última semana de abril, os óbitos mundiais giravam em torno de 220 mil. Uma catástrofe, sem dúvida! Por outro lado, o tabagismo ainda é responsável por 7 milhões de óbitos por ano no mundo. Estamos falando da principal causa evitável de morte, que encurta a vida de homens em dez anos e de mulheres, em 12.
A compreensão de que as consequências do coronavírus para os tabagistas podem ser mais graves e até letais tem motivado muitos fumantes a iniciarem um processo para largar o vício. E é fundamental que a Organização Mundial da Saúde (OMS), governos e entidades médicas se apropriem da bandeira antitabagismo nesse momento histórico, em que fica claro o protagonismo do cigarro nessa verdadeira história de terror.
O Brasil está fazendo a lição de casa — e não é de hoje. O país se tornou o segundo do mundo a cumprir as medidas indicadas pela OMS para a redução do fumo. Na última década, o número de fumantes no país caiu 40%. Um relatório da OMS revela que, entre as 171 nações que aderiram às medidas globais, apenas o Brasil e a Turquia implementaram ações bem-sucedidas em todas as esferas propostas.
Mas ainda temos muito a fazer. Ocupamos o oitavo lugar no ranking mundial de tabagistas, com 7,1 milhões de mulheres e 11,1 milhões de homens. Portanto, as campanhas antitabaco devem pegar carona na pandemia para que o trabalho de conscientização da população continue progredindo.
Porém, largar o cigarro não é tão simples quanto pode parecer. Estamos falando de uma doença, e não de um (mau) hábito. Trata-se de uma patologia com mais de cinco circuitos cerebrais envolvidos.
Ninguém espera que um diabético ou um hipertenso se trate sozinho. Da mesma maneira, um tabagista que busca uma solução definitiva para o seu problema irá precisar de uma estratégia terapêutica, com remédios específicos que aumentam em até cinco vezes a chance de parar de fumar e minimizam a possibilidade de recaída precoce e ganho de peso, um dos medos de quem quer deixar o cigarro de lado.
Os tratamentos — que, inclusive, são disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) gratuitamente — preveem o uso da terapia escalonada. Ou seja, a introdução gradual dos remédios, como se faz para cuidar de quem tem pressão alta. A diferença é que, nesse caso, o paciente será medicado apenas por um período médio de três a quatro meses.
A boa notícia é que a recompensa por vencer a luta contra o tabagismo chega rápido: 20 minutos depois do último cigarro, a pressão e a frequência cardíaca normalizam. Entre 24 e 72 horas, os pulmões já oxigenam o sangue melhor. Depois de alguns dias, o olfato e o paladar ficam mais aguçados. Um ano sem cigarro é sinônimo de reduzir o risco de infarto pela metade. Entre cinco e dez anos após a cessação do tabagismo, a probabilidade de um infarto será igual ao de uma pessoa que nunca fumou.
Sabemos que a batalha não é simples, mas a Covid-19 está nos mostrando, em velocidade acelerada e com menor chance de defesa, a importância de apagar o cigarro de sua história. Definitivamente.
*Dra. Jaqueline Scholz é cardiologista, assessora científica da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) e diretora do Programa de Tratamento do Tabagismo do Incor, do Hospital das Clínicas da USP.
Fonte: Abril Saúde
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