Os benefícios do avanço tecnológico no contexto dos exames complementares para a saúde são inegáveis, mas raramente suas consequências negativas são abordadas. No 53º Congresso Brasileiro de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial, o Dr. André Volschan, cardiologista e coordenador de ensino e pesquisa do Hospital Pró-Cardíaco, e o Dr. Wilson Shcolnik, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), aceitaram o desafio de lançar um olhar crítico sobre o outro lado da tecnologia médica, ao falarem sobre os conceitos de overuse (quando um tratamento é utilizado sem embasamento médico consistente ou oferece mais riscos do que benefícios ao paciente) e underuse (quando o tratamento não está sendo subutilizado ou não está sendo utilizado).
É cada vez mais comum encontrar exames capazes de rastrear doenças em pessoas que sequer apresentaram sintomas. A possibilidade de antecipar os problemas de saúde sob a justificativa de maior chance de cura pode levar ao diagnóstico prescindível.
O estudo apresentado pelo Dr. André mostra que isso ocorre com frequência nas doenças oncológicas. [1] Para o cardiologista, “o impacto de um diagnóstico precoce no prolongamento da vida não é uma equação tão exata assim”, mas ele afirmou que existem subgrupos dentro das doenças que necessitam de atenção real.
Durante a apresentação, o cardiologista exibiu um artigo publicado no periódico JAMA que questiona a eficácia da implantação de stent para evitar complicações cardíacas. O estudo não encontrou nenhuma evidência científica de que o dispositivo pudesse trazer benefício maior que outras terapias, mais tradicionais e menos invasivas, em pacientes estáveis com doença coronariana. [2] Outra pesquisa, também publicada no periódico JAMA, analisou 10 anos de dados ambulatoriais norte-americanos e mostrou resultados alarmantes: apenas dois dos 11 indicadores de overuse apresentaram queda. [3] Essa tendência de solicitar exames em excesso, muitas vezes sem embasamento clínico, gera um prejuízo orçamentário para os hospitais. Ainda segundo a pesquisa, dos 700 bilhões de dólares que são desperdiçados todos os anos na área médica, 280 bilhões têm como causa o overuse.
Para entender melhor os motivos desse aumento de diagnósticos e tratamentos prescindíveis, o Dr. André mencionou outro artigo, que apresenta seis fatores que contribuíram para o surgimento do overuse na medicina: (1) falta do exercício da dúvida na formação médica; (2) modelo de remuneração; (3) aumento da judicialização na área da saúde; (4) preferência do paciente pela tecnologia; (5) percepção de que mais exames e tratamentos são equivalentes a um cuidado melhor; (6) marketing das indústrias da área da saúde voltado diretamente ao consumidor. [4] Um trabalho publicado no periódico Annals of Internal Medicine revelou que um em cada três médicos solicita exames e realiza procedimentos porque os pacientes pediram mesmo sabendo que não são necessários. [5]
Para o Dr. André, os exames complementares são importantes, mas não podem se sobrepor ao olhar do médico. O cardiologista afirmou também que a intuição médica – desenvolvida a partir da experiência – está sendo esquecida, e muitos profissionais não têm mais tolerância para a incerteza nos quadros clínicos.
“O modo de produção por quantidade já passou, agora é qualidade”, disse. Além do desperdício da verba hospitalar, o próprio paciente pode sofrer com os efeitos colaterais de tratamentos desnecessários. Até danos psicológicos podem ser observados, por exemplo, quando a doença carrega um estigma ou o paciente fica exposto a uma percepção de vulnerabilidade.
“A cabeça do médico deve ser probabilística, para formular todas as possibilidades diagnósticas, o que não significa pedir mais exames, mas conversar com e observar mais os pacientes”, afirmou o médico.
Se, por um lado a classe médica deve repensar o modo de enxergar o atendimento em saúde frente às questões tecnológicas, por outro, deve manter (e até incentivar) certas práticas preventivas que deram certo. Para o Dr. Wilson, os movimentos antiexame e antivacina podem estar diretamente relacionados com o fato de exames complementares serem pouco solicitados ou não serem solicitados, assim como tratamentos, durante o atendimento médico.
“A ausência de comunicação com os pacientes, de campanhas de vacinação e até a falta de medicamentos na saúde pública contribuíram para o retorno de doenças preveníveis”, afirmou o médico. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o movimento antivacina uma ameaça à saúde mundial. [6]
Segundo um artigo publicado no periódico PLOS ONE, a média de casos de subutilização é maior que a de super utilização (44,8% e 20,6%, respectivamente). [7] Ainda de acordo com o estudo, mesmo que a subutilização tenha maior prevalência na área médica, a maior parte das pesquisas publicadas se concentram em analisar a super utilização. A primeira lista de exames essenciais da OMS tem 113 itens: 46 são atendimentos de rotina, 69 são para doenças específicas e 12 são para câncer. [8]
Ainda de acordo com as informações da OMS, 70% das mortes por câncer em países de baixa e média rendas ocorrem em função do diagnóstico tardio. O presidente da SBPC/ML publicou um artigo que aborda um aspecto da subutilização no Brasil. O estudo mostra que 5,4% dos exames feitos em laboratórios particulares sequer são visualizados pelos pacientes. [9] O Dr. Wilson afirma que apesar de parecerem problemas antagônicos, tanto o overuse como o underuse são questões complementares: “A subutilização também pode levar a tratamentos equivocados, hospitalização prolongada e consequente prejuízo para o orçamento hospitalar.”
Fonte: Medscape
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