O uso de telemedicina no cuidado de pacientes que sofreram um infarto agudo do miocárdio (IAM), em particular a transmissão de eletrocardiograma (ECG), foi associado de forma consistente a melhora da sobrevida, segundo uma revisão sistemática e metanálise publicada em outubro no periódico Heart. [1]
Os autores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) identificaram evidências de qualidade moderada do impacto positivo da telemedicina combinada ao cuidado tradicional sobre a mortalidade intra-hospitalar entre pacientes com IAM. Além disso, o recurso também foi associado à redução do tempo transcorrido entre o momento que o paciente com IAM foi admitido no hospital e a realização do cateterismo (tempo porta-balão), e à redução da mortalidade em 30 dias e em longo prazo, no entanto, as evidências que levaram a estas associações foram de qualidade mais baixa.
A Dra. Milena Soriano Marcolino, uma das autoras do estudo e professora adjunta da UFMG contou ao Medscape os detalhes do trabalho.
A equipe selecionou 35 estudos, dos quais 30 eram não randomizados e controlados e o restante quasi-experimental (antes – depois), a partir de buscas nos bancos de dados: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE), Cochrane Central Register of Controlled Trials (CENTRAL), Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Base de Dados de Enfermagem (BDENF), Índice Bibliográfico Español en Ciencias de la Salud (IBECS), Web of Science, Scopus e Google Scholar. Dos artigos incluídos na pesquisa, oito eram da América do Norte, 11 da Europa, nove da Ásia, dois da Austrália e cinco da América do Sul (todos do Brasil). Ao todo, as publicações somavam 16.763 pacientes, dos quais 7.897 pertenciam ao grupo no qual foi usada a telemedicina. Todos os estudos analisados incluíram pacientes com IAM com elevação do segmento ST e quatro trabalhos também incluíram pacientes sem elevação do segmento ST.
A telemedicina foi usada para transmitir o resultado do ECG em todos os estudos, sendo que em 31 dos 35 trabalhos analisados o recurso foi usado no atendimento pré-hospitalar. A Dra. Milena explicou que os exames eram feitos na ambulância e transmitidos para um centro de referência para que um cardiologista ou emergencista fizesse a análise dos resultados, a fim de identificar os casos de IAM com supradesnivelamento do segmento ST precocemente, e conforme fosse, levar o paciente direto para a hemodinâmica para fazer uma angioplastia primária, reduzindo o tempo até o tratamento adequado. A transmissão do ECG também foi utilizada para guiar trombólise em estudos cujos centros não dispunham de hemodinâmica.
Os resultados mostram que a taxa de mortalidade intra-hospitalar (desfecho primário) foi de 4,9% no grupo telemedicina + cuidado tradicional, e, entre os pacientes que receberam apenas o cuidado tradicional a mortalidade intra-hospitalar foi de 8,4%. Nesse caso, o número necessário para tratar (NNT) foi 29. Houve ainda evidência de diminuição da mortalidade em 30 dias e em longo prazo no grupo telemedicina, assim como redução do tempo porta-balão (redução média de 28 minutos).
A Dra. Milena afirmou que, como não existem estudos randomizados avaliando o impacto do uso da telemedicina sobre os desfechos analisados, o grupo fez uma revisão sistemática de estudos não randomizados.
“Apesar de serem a melhor evidência disponível, tais estudos apresentam risco de viés inerente ao delineamento. A ferramenta recomendada pela Cochrane para análise do risco de viés de estudos não randomizados é a Risk Of Bias In Non-randomized Studies – of Interventions (ROBINS-I). Todos os estudos com delineamento quasi-experimental, por exemplo, foram classificados como tendo alto risco de viés, pois houve mudança do tratamento do infarto ao longo do tempo, com acréscimo de medicamentos com impacto na mortalidade”, esclareceu a médica.
Ela disse ainda que, para avaliar a qualidade das evidências e a confiança na estimativa dos efeitos apresentados, é recomendado usar o sistema Grading of Recommendations, Assessment, Development and Evaluation (GRADE).
“Esse sistema leva em consideração não apenas o delineamento e o risco de viés dos estudos, mas também a presença de inconsistências, evidências indiretas, e imprecisões. Além disso, as evidências provenientes de estudos não randomizados podem ser elevadas considerando outros fatores, como a magnitude de efeito”, destacou.
Dessa forma, segundo a médica, apesar de as evidências serem provenientes de estudos não randomizados, com risco de viés para a mortalidade intra-hospitalar de moderado a alto, foram identificadas evidências consistentes do benefício da telemedicina, com intervalo de confiança estreito, baixa heterogeneidade, ausência de evidências de viés de publicação e grande magnitude do efeito.
“O grau de confiança nos desfechos secundários foi afetado pela heterogeneidade e, no caso de mortalidade em 30 dias e a longo prazo, o baixo número de estudos impossibilitou análise adequada do risco de viés de publicação”, afirmou.
No Brasil, a implementação da telemedicina no sistema público de saúde foi iniciada em 2006. Recentemente, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) publicou uma diretriz em telemedicina aplicada à cardiologia. [2] Mas, apesar dos avanços, a Dra. Milena considera que ainda há um longo caminho a ser percorrido.
O sistema de telediagnóstico ECG (tele-ECG), lembrou a médica, é a atividade mais frequente na telecardiologia, difundida na saúde pública e privada, com diversas empresas brasileiras oferecendo serviços de laudos 24 horas.
“Em 2017, o Ministério da Saúde lançou o projeto Oferta Nacional de Telediagnóstico (ONTD), com o objetivo de ampliar o serviço de diagnóstico de exames realizados à distância nas áreas menos assistidas, e o tele-ECG foi o primeiro exame a ser oferecido na atenção primária em nível nacional”, disse a pesquisadora.
A Dra. Milena comentou que, apesar de a incorporação do sistema tele-ECG ter sido realizada com sucesso ao atendimento a pacientes com IAM em Belo Horizonte, na Região Norte de Minas Gerais, em Campinas, no Rio de Janeiro, em Salvador, e em São Paulo, a falta de investimento em saúde fez com que o funcionamento do sistema fosse interrompido em alguns locais – mesmo diante das evidências do aumento do acesso ao tratamento adequado e do impacto sobre a mortalidade.
A médica destacou que, no Brasil, também existem intervenções baseadas na interpretação à distância de exames holter de 24 horas e na monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA), porém, ainda são pouco utilizadas no serviço público.
“O serviço de teleconsultoria, que no Brasil só pode ser realizado entre profissionais de saúde, possibilita que profissionais de saúde da atenção primária discutam casos clínicos com especialistas. Há iniciativas isoladas no Brasil do uso do serviço para apoio ao manejo de pacientes com infarto, com evidências de uso mais adequado do trombolítico, aumento da proporção de pacientes submetidos à terapia de reperfusão e, associada à transmissão do ECG, tendência à redução de mortalidade”, disse a Dra. Milena.
Ela acrescentou que o sistema tele-ECG tem se mostrado uma estratégia promissora para a racionalização do acesso a propedêutica complementar, diagnóstico precoce, priorização de encaminhamentos e organização de listas de espera nos serviços de saúde.
Em relação ao manejo do infarto, a médica avaliou que, “infelizmente, ainda estamos longe do cenário ideal”. Para a especialista, são necessários investimentos para a organização de linhas de cuidado do infarto, acesso à terapia de reperfusão, capacitação dos profissionais de saúde da linha de frente e implementação e ampliação do serviço de tele-ECG.
Fonte: Medscape
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