BRASÍLIA — O Ministério da Agricultura, comandado por Tereza Cristina, elaborou documento para pleitear, junto ao Ministério da Saúde, a retirada do Guia Alimentar para a População Brasileira para uma "ampla revisão". A pasta rebate menções do guia que relacionam os alimentos ultraprocessados a uma nutrição desbalanceada, e chama de "pseudocientíficos" dados que associam determinadas práticas agrícolas a efeitos ambientais adversos.
Em nota técnica a ser encaminhada a Eduardo Pazuello, à qual o GLOBO teve acesso, a pasta da Agricultura afirma que a classificação de alimentos do guia pelo nível de processamento é "confusa e incoerente" e caracteriza "evidente ataque sem justificativa à industrialização".
Entidades ligadas à nutrição veem a tratativa como uma forma de beneficiar a indústria alimentícia em detrimento da saúde da população.
A última versão do Guia Alimentar foi elaborado pelo Ministério da Saúde em 2014 e traz, entre outros pontos, a classificação dos alimentos por nível de processamento, desde o "in natura" até o "ultraprocessado". O objetivo é incentivar práticas alimentares saudáveis no âmbito individual e coletivo e também orientar políticas públicas.
Um dos pontos questionados pela pasta de Tereza Cristina na nota técnica é a informação do guia de que os ultraprocessados contém muitos ingredientes, à qual chamou de "algo cômico".
"Em relação a diferenciação de 'alimento ultraprocessado' por meio da contagem do número de ingredientes (frequentemente cinco ou mais) parece ser algo cômico. As receitas domésticas que utilizam vários ingredientes não podem em hipótese alguma serem rotuladas dessa forma, o que demonstra um evidente ataque sem jusficativa à industrialização", critica a Agricultura.
O guia, no entanto, ao falar da quantidade de ingredientes nos ultraprocessados como uma de suas características, ressalta se tratar de preparações industrializadas. "A fabricação de alimentos ultraprocessados, feita em geral por indústrias de grande porte, envolve diversas etapas e técnicas de processamento e muitos ingredientes, incluindo sal, açúcar, óleos e gorduras e substâncias de uso exclusivamente industrial!", informa o guia.
Em outro trecho, o documento da Agricultura ataca a informação do guia de que, em geral, os nomes dos ingredientes presentes nos alimentos ultraprocessados são desconhecidos. "Em relação ao outro ponto de diferenciação de 'alimento ultraprocessado', a verificação da 'presença de ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em preparações culinárias', a mensagem fica mais confusa", diz a nota técnica.
Ao pedir a "retirada" do guia, a Agricultura defende que uma revisão seja feita "com ampla discussão com setores especializados na ciência dos alimentos". "Entendemos que a ciência médica e da nutrição são fundamentais nesse contexto do Guia, entretanto é absolutamente indispensável a participação de outros especialistas como os Engenheiros de Alimentos", pede a pasta de Tereza Cristina.
Sobre prejuízos ambientais de determinadas produções, a Agricultura faz breve menção a outro documento já colocado anteriormente em que rebate tais dados: "os argumentos muitas vezes apresentados são contrastantes com a realidade dos fatos da agricultura quando relacionados a aquecimento global, desmatamento e poluição. Entretanto, assim como mencionado anteriormente, os dados são pseudocientíficos e vem sendo refutados sistematicamente pela Embrapa e demais instituições de pesquisa".
A nota traz como referência dois textos sobre nutrição e alimentos processados e é assinada por Luis Eduardo Pacifi Range, diretor de Análises Econômicas e Políticas Públicas do Ministério da Agricultura, e Eduardo Mello Mazzoleni, coordenador do mesmo setor. Eles apontam que "o Guia brasileiro é considerado um dos piores (do planeta)”.
A afirmação é rebatida pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), que ajudou o Ministério da Saúde na elaboração da última versão do Guia Alimentar, em 2014. "Assim não pensam organismos técnicos das Nações Unidas, como a FAO, a OMS e o UNICEF, que consideram o Guia brasileiro um exemplo a ser seguido. Assim não pensam os Ministérios da Saúde do Canadá, da França, do Uruguai, do Peru e do Equador, que têm seus guias alimentares e suas políticas de alimentação e nutrição inspirados no Brasil", diz o grupo em nota.
Os pesquisadores apontam ainda "rigoroso estudo publicado em 2019 pela revista Frontiers in Sustainable Food Systems, que elegeu o guia alimentar brasileiro como o que melhor atendia a critérios previamente estipulados quanto à promoção da saúde humana, do meio ambiente, da economia e da vida política e sociocultural".
O grupo da USP aponta que a nota técnica da Agricultura faz confusão ao mencionar um estudo feito nos Estados Unidos que aponta que "existem alimentos processados que contribuem com uma ampla variedade de nutrientes em todos os níveis de processamento", como argumento para se contrapor à recomendação do Guia Alimentar de evitar consumo dos ultraprocessados.
"Além de ignorar o fato de que o Guia Alimentar enfatiza os vários benefícios do processamento de alimentos — como ampliar sua duração e diversificar a dieta — recomendando que se evite apenas o consumo de alimentos ultraprocessados, o estudo de EICHER-MILLER et al., 2012, que avaliou o perfil nutricional de alimentos consumidos nos Estados Unidos, simplesmente não considerou a categoria de alimentos ultraprocessados em sua avaliação", apontam os pesquisadores.
O Nupens/USP diz ainda que a Agricultura "omite a vasta literatura científica nacional e internacional acumulada desde 2009" sobre a classficação dos alimentos em nível de processamento. "Diante da fragilidade e inconsistência dos argumentos apresentados na Nota Técnica do Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e da absurda e desrespeitosa avaliação do Guia Alimentar brasileiro, confiamos que o Ministério da Saúde e a sociedade brasileira saberão responder à altura o que se configura como um descabido ataque à saúde e à segurança alimentar e nutricional do nosso povo", aponta.
Interesses escusos
O Núcleo de Pesquisa e Estudos em Nutrição e Saúde Coletiva da Universidade de Campina Grande (PB) afirmou que os "reais interesses" do Ministério da Agricultura são beneficiar a indústria alimentícia.
"Esta preocupação não é recente e está escancarada na discussão sobre rotulagem de alimentos, sobre marketing da indústria alimentícia (principalmente associada ao público infantil), sobre o aumento de impostos nos refrigerantes e outros temas que são defendidos pelas entidades que visam a garantia da Alimentação Adequada e Saudável e Segurança Alimentar e Nutricional", destacou o grupo em nota.
De acordo o Núcleo de Pesquisa da universidade, a nota técnica traz dados descontextualizados dos textos apontados como referência e argumentos vazios para desqualificar o Guia Alimentar. "Incoerente é, na verdade, comparar um processamento industrial com uma preparação culinária caseira, visto que ambas levam em consideração diversos fatores além da quantidade de ingredientes usados", diz o comunicado.
O Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância do SUS ligada ao Ministério da Saúde, divulgou nota para defender a manutenção e implementação efetiva do Guia Alimentar, produzido em 2006 e revisado em 2014. Uma recomendação nesse sentido foi feita em fevereiro deste ano, diante da falta de efetivação das diretrizes do documento.
"A demanda é parte do compromisso assumido pelo poder público diante da Política Nacional de Alimentação e Nutrição e da Política Nacional de Promoção da Saúde. Para o controle social e entidades ligadas à nutrição, modificar o Guia sem discussão pode abrir margem para o incentivo a alimentos industrializados e ultraprocessados", destaca nota do CNS.
Em nota divulgada após a publicação desta reportagem, o Ministério da Agricultura negou que tivesse enviado a solicitação ao Ministério da Saúde — informação que foi corrigida no texto. Segundo o comunicado da pasta, "o assunto está sendo debatido internamente, em Câmaras Setoriais".
"Os textos que circularam nas redes sociais são minutas de documentos internos. Sugerem a revisão do Guia Alimentar, incorporando entre outros temas a participação de engenheiros de alimentos na atualização do documento", completou o ministério.
Fonte: O Globo
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