BRASÍLIA — O Ministério da Saúde editou nesta sexta-feira uma portaria que obriga médicos e profissionais da saúde a notificarem a polícia ao acolherem mulheres vítimas de estupro que procurem uma unidade de saúde pública para realizar um aborto. A interrupção da gravidez é permitida no Brasil nessa situação.
A medida, publicada no Diário Oficial da União (DOU) desta sexta-feira, é assinada pelo ministro interino Eduardo Pazuello.
A norma ainda determina que, no termo de consentimento que as pacientes assinam para fazer a interrupção da gestação, haja uma lista dos riscos e dos desconfortos decorrentes do procedimento. Além disso, os médicos devem informar às mulheres que elas podem ver o feto ou o embrião por meio de um exame de ultrassom antes da realização do aborto.
A medida informa ainda que "os profissionais mencionados deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime".
Especialistas ouvidos pela reportagem criticaram a medida. A ginecologista e obstetra Helena Paro, coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do HCU, da Universidade Federal de Uberlândia, afirmou que a medida afasta as mulheres dos serviços de saúde e aumenta o risco de abortos clandestinos.
— A portaria é um retrocesso. O lugar do cuidado em saúde não é o da polícia. Na portaria anterior, de 2005, havia a presunção de veracidade da palavra da mulher, adolescente ou criança. Mas quando se atrela a denúncia à polícia ao cuidado, não se quer punir o agressor mas simplesmente saber se houve estupro ou não — afirma.
A advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski, do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil), informar os riscos do aborto não é problemático, desde que se informe também os perigos de não se fazer o procedimento.
— A informação não pode ter cunho ideológico: é preciso respeitar a autonomia (da mulher) para se decidir. Ou o que se está fazendo é induzir essa decisão — afirma.
A advogada lembra ainda que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já considerou os médicos têm o direito e o dever de manter o sigilo na relação com os pacientes.
Paula Sant’anna, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Direitos das Mulheres da Defensoria de São Paulo, por sua vez, diz que organizações sociais, médicas e especialistas em Direito da Família já estão se movimentando para avaliar a legalidade da portaria.
— Se uma norma apresenta excesso de regulamentação, ou seja, vai além do que o estabelicido no Código Penal, criando condições para acessar o aborto, pode ser sim o caso de ter ações judiciais questionando.
O ato federal desta sexta foi justificado pelo governo como uma garantia dada "aos profissionais de saúde envolvidos no procedimento de interrupção da gravidez segurança jurídica efetiva para a realização do aludido procedimento nos casos previstos em lei".
Por meio de nota, o Ministério da Saúde afirmou que a antiga portaria estaria "em desacordo com a lei federal". A pasta alega que com a edição da lei nº 13.718, de 2018, o crime de estupro passou a ser investigado como Ação Penal Pública Incondicionada, quando a denúncia é feita pelo próprio Ministério Público. O Ministério da Saúde argumentou ainda que o decreto nº 3.688, de 1941, caracteriza como contravenção o fato de funcionários públicos não comunicarem às autoridades crimes como o de estupro, por isso a nova exigência.
A norma técnica de 2005 do Ministério da Saúde citada por Helena Paro e batizada de "Atenção Humanizada ao Abortamento", informava a não exigência legal da comunicação à polícia de violência sexual sofrida por pacientes decididos a acessar o serviço do aborto legal.
"O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesses casos e a mulher violentada sexualmente não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento", afirma a norma.
A lei 13.931, de 2019, no entanto, passou a determinar a notificação obrigatória de casos de violência contra mulher. Alvo de crítica de movimentos pelos direitos humanos, a legislação agora foi incorporada na nova portaria para a rede de saúde pública.
A nova determinação do ministério foi publicada menos de duas semanas após o caso da menina de 10 anos que abortou em Recife. Ela engravidou depois de ser estuprada no Espírito Santo.
No Brasil, o aborto é legal em três situações: quando é consequência de estupro; se há risco de vida para a mãe; ou se o feto é anencéfalo. A não ser nessas hipóteses, o aborto provocado no país é crime tipificado no Código Penal.
Questionado pelo GLOBO, o Conselho Federal de Medicina se limitou a dizer que encaminhou a portaria do Ministério da Saúde para análise de sua assessoria jurídica e de sua Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia.
Repercussão
Deputadas do PSOL, PCdoB, PT e PSB protocolaram na Câmara, na tarde desta sexta-feira, um projeto de decreto legislativo (PDL) para suspender a portaria editada pelo Ministério da Saúde. Segundo a deputada Sâmia Bonfim (PSOL), também estão sendo avaliadas medidas judiciais para barrar nas novas regras.
— Essa portaria tem muitos temas que ferem a dignidade humana. Praticamente inviabiliza o aborto legal, porque cria uma série de dificuldades para desestimular a vítima. Muitas delas nem sabe que pode realizar o aborto legal, criar obrigatoriedade de notificar a polícia só dificulta. O papel do Ministério da Saúde é assegurar que a mulher não sofra uma nova violência — afirmou Sâmia ao GLOBO.
Na avaliação da deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS), o ministro interino da Saúde está "institucionalizando a tortura de mulheres que foram estupradas". Em rede social, Melchionna criticou a portaria.
Na proposta, Jandira Feghali (PCdoB-RJ) ressalta que a nova norma restringe os direitos das mulheres vítimas de violência sexual.
"Na prática a portaria inviabiliza o atendimento das mulheres e meninas vítimas de violência sexual nos serviços de saúde, ao fazer tais exigências", escreveu a deputada. Além de Feghali, Sâmia Bomfim e Fernanda Melchionna, o PDL foi assinado pelas também deputadas Perpétua Almeida (PCdoB-AC), Alice Portugal (PCdoB-BA), Luiza Erundina (PSOL-SP), Lídice da Mata (PSB-BA), Natália Bonavides (PT-RN), Áurea Carolina (PSOL-MG) e Erika Kokay (PT-DF).
Damares disse que regras não mudariam
Ontem, durante a live semanal do presidente Jair Bolsonaro, a ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, assegurou que não mudaria as regras para o aborto legal. O debate sobre o tema veio à tona nos últimos dias com o episódio da criança de 10 anos que foi violentada pelo próprio tio, no Espírito Santo e precisou fazer um aborto.
A portaria desta sexta-feira revoga trechos de outra, editada pelo Ministério da Saúde em 2005. Na portaria antiga, já constavam quatro etapas para que as vítimas de violência pudessem fazer o aborto legal.
Pelas regras anteriores, a mulher tinha que descrever a violência, com data, horário, local, descrição do agressor e outras circunstâncias, a dois profissionais de saúde. Depois disso, um parecer técnico atesta a compatibilidade entre a idade gestacional e a data da violência sexual relatada.
Em seguida, a equipe de saúde multidisciplinar precisa aprovar a realização do procedimento, atestando, entre outras questões, a ausência de "indicadores de falsa alegação de crime sexual".
Por fim, as mulheres (ou representantes legais, no caso de menores) assinam termos de responsabilidade e consentimento, com declaração de estarem cientes dos crimes cometidos caso tenham mentido sobre o estupro e dos riscos e desconfortos possíveis decorrentes do procedimento.
A nova portaria torna agora obrigatória a inclusão, nesse termo de consentimento, de uma lista extensa de riscos do aborto a cada idade gestacional, como lesões no útero, sangramento intenso, sepse e até morte da mulher. O documento aponta que os dados têm como base o protocolo da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Fonte: O Globo
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