Uma criança quer algo que não pode ter. A sobremesa antes do almoço, um brinquedo caríssimo de Natal ou a janela do avião. Infelizmente, nem todos os desejos, infantis ou adultos, podem ser atendidos.
Nos últimos dias, o caso de um menininho que queria sentar na janela de um avião, mas a passageira não quis trocar de lugar — e acabou sendo filmada, acusada de falta de empatia —, causou intenso debate. Mas, afinal, como os pais e a sociedade como um todo devem lidar com o querer de uma criança e sua chorosa frustração?
O primeiro passo, de acordo com especialistas, é entender que querer coisas não é um problema.
— As crianças querem coisas e isso é maravilhoso, ter vontade é maravilhoso, queremos gente com vontade no mercado de trabalho, na vida. Frustrar todos os quereres porque a vida precisa de limites pode jogar para a sociedade gente sem vontade — explica psicopedagoga e educadora parental Isa Minatel, autora do livro “Crianças sem limites” (editora Figurati).
Mas aí, naturalmente, as coisas muitas vezes não dão certo. E quando a criança não tem o que quer, ela vai ter raiva e vai chorar.
— A criança está tendo uma manifestação de uma fase do seu desenvolvimento, que é a fase da birra. É normal, ela não tem controle de impulso, não tem discernimento para julgar se querer aquilo é algo certo ou errado, ela está na luta pela autonomia, que é absolutamente coerente com seu momento de desenvolvimento, e ela só está manifestando seu desejo — diz o pediatra e colunista do GLOBO, Daniel Becker.
O grande problema é que parte dos pais, e até da sociedade, não consegue tolerar essa decepção e seus efeitos.
— É fundamental a gente ter a noção de que não é tarefa nossa fazer nossos filhos felizes a qualquer custo. É preciso de fato dar limite, deixar eles enfrentarem as adversidades, enfrentarem os pequenos machucados da infância, para que os grandes machucados que vão vir mais tarde, metaforicamente, sejam melhor aceitos e suportados — completa Becker.
De acordo com os especialistas, parece que passamos de um extremo ao outro nas últimas décadas:
— Viemos de uma relação autoritária com as crianças, miramos em uma relação positiva e acertamento em uma relação permissiva. Quando só temos duas opções, a palmada ou o sim para tudo, estamos sempre em desequilíbrio. Entre o branco e o preto estão os tons de cinza e é ali que a gente se aproxima do equilíbrio — afirma Isa Minatel.
Ou seja, se alguém ainda acha que falta palmada ou que antigamente era muito melhor, pode parar por aí.
—A pior escolha é sempre a violência, que gera trauma e resultados péssimos para a vida adulta. Crianças que sofrem violência na infância, seja verbal, psicológica ou física, têm maior propensão à doença crônica, problemas sociais, no casamento, nas relações com os próprios filhos, no trabalho, uso de drogas, enfim, um monte de problemas comprovados pela ciência — enfatiza o pediatra.
Por outro lado, a permissividade também é nociva, argumenta o especialista:
— Se você diz à criança que ela pode tudo, não coloca limites claros e regras firmes, não a deixa se expor a certas frustrações e adversidades, impede de desenvolver a própria autonomia e a capacidade de lidar com a vida e os seus problemas. Essa criança também vai ser insegura, vai ter baixa autoestima, ser narcisista, também terá problemas de relacionamento e tudo mais.
Para o psicólogo, mestre em educação e palestrante Marcos Meier, não adianta: é responsabilidade dos pais educar os filhos e isso envolve encarar essas situações.
— O que que é uma educação de qualidade? É você fazer com que seu filho seja maduro emocionalmente de acordo com a idade, mas cada vez mais, porque se a gente esperar que a maturidade venha aos 18, aos 20, não vai vir. É o que a gente está vendo, jovens de 25, 30 anos, com comportamento infantilizado — afirma.
Satisfação suspensa
Meier destaca dois fatores para alcançar essa maturidade emocional. O primeiro se chama adiar a satisfação do prazer. Em outras palavras, é “espere, não é a tua vez”, “isso não é para você”, “depois você ganha”, “é só depois do almoço”. É a criança que pede a sobremesa antes do almoço e você diz “depois de comer”, que quer atenção quando a mãe está numa ligação de trabalho e ela apenas faz um “espere” com as mãos.
— Os pais conscientes fazem o quê? “Não, filho, espere, depois eu te atendo, depois eu converso”. E aí quando chegar o momento possível, tem que ser algo muito especial, com atenção real. Esse ganho vai reforçar o comportamento e o entendimento de que esperar é bom, funciona, dá certo. Os jovens que passam em primeiro lugar no Enem, nos grandes vestibulares, são os que sabem deixar o prazer para depois, adiar a satisfação. Desliga o celular, o videogame, encontra a namorada só no final de semana, joga bola apenas sábado à tarde. E qual é o prêmio dele? Passar nos primeiros lugares. Então ele entende que deixar o prazer para depois traz sucesso.
O segundo fator, segundo Marcos Meier, é a resistência à frustração. Significa aguentar as dores da vida. Você pode chorar, mas aprende a suportar.
— A tendência dos pais é dar tudo o que a criança quer e aí evitam dizer não. “Coitado do meu filho se eu disser não.” Gente, isso é terrível, diga não e pronto. A criança vai chorar, a gente vai acolher, ela não vai ficar bem durante alguns minutos, depois vai brincar. Então ela vai aprender que o não tem uma dor, mas essa dor vai ser superada e depois a vida segue. Aí, o que que acontece? Ele desenvolve resistência à frustração. A oportunidade que você tem de ajudar teu filho a crescer, a amadurecer, é também dizendo não.
Obviamente, as crianças são o sintoma de um problema que tem os adultos como causa. Muitos pais são como os filhos: acham que têm direito a tudo, querem só prazer e tudo imediatamente, fazem escândalos quando contrariados e por aí vai, como reforça a neuropsicopedagoga Renata Aguilar.
— É preciso mostrar aos filhos que não é possível ter tudo o que se quer. Mas a falta de limite não está só nas crianças, está nos pais. Os pais são o exemplo, mas brigam para passar antes na fila do supermercado, fazendo escândalo porque o cabelo não ficou como queria, exigindo reunião da escola no sábado, discutindo pela vaga no estacionamento. O filho é reflexo da família — afirma Aguilar.
O que fazer
A maioria dos pais tenta acertar e às vezes pode realmente ficar meio perdido com o drama das crianças. Ninguém gosta de ver aquelas lágrimas escorrendo pela carinha amada. A resposta unânime dos especialistas é: acolhimento. Conversar calmamente com o pequeno, dar um abraço, respeitar seu sofrimento com carinho e empatia.
Segundo Daniel Becker, é a hora de dizer “eu sei que você está triste/zangado e tudo bem ficar assim”.
Mas não acaba aí. É hora, então, de respirar, orientar, explicar o que está acontecendo e depois tentar distrair a criança ou tirar algum ensinamento daquela situação.
Isa Minatel explica:
— É também um momento de união e conexão. Os pais podem dizer: “É chato mesmo, te entendo”. Podem falar quando também ficaram frustrados. Mas o acolher é o começo, precisa direcionar depois. Tem muita gente só acolhendo, mas também tem que tirar a criança dessa situação. Ou puxa para a questão da educação, tentar entender o que aconteceu, fazer perguntas, ou muda o assunto e ajuda a distrair.
Fonte: O Globo
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