Todo ano a dona de casa Lindalva Ribeiro tem de levar o filho autista, William, ao neurologista no centro de Oriximiná, no Pará, para revisar a medicação e emitir o laudo exigido para o que o garoto receba o BPC (Benefício de Pagamento de Prestação Continuada) pago pelo INSS a pessoas com deficiência.
Para chegar ao consultório, eles saem de casa, no quilombo Boa Vista, e percorrem cinco horas de barco, com despesas entre passagens e alimentação em torno de R$ 300, quase 15% da renda mensal da família.
— Vou economizando por muito tempo para a viagem — conta ela. Ainda assim, por falta de vagas, não houve consulta em 2023.
Este ano foi diferente. Na manhã de 20 de junho, ela caminhou cem metros, até o ponto de telessaúde da comunidade para, na companhia de um agente de saúde, ser atendida online por um médico da Universidade do Estado do Pará (Uepa).
— Ele conversou com a gente, ajustou os comprimidos, e agora meu filho está dormindo melhor.
A iniciativa é parte do projeto Saúde Digital, programa da Uepa em parceria com o Ministério da Saúde, que a partir deste mês deve se estender a um total de 30 municípios de difícil acesso no Estado. Ao longo do semestre, o plano é expandir as consultas, hoje restritas à neurologia, para clínica geral, psiquiatria, ortopedia, cardiologia, dermatologia e fisioterapia, como conta o coordenador do projeto, Emanuel de Sousa, diretor do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) da universidade.
Experiências como essas vêm ganhando força pelo mundo afora. No G20, o Grupo de Trabalho de Saúde, presidido pelo Brasil, destaca a saúde digital como prioridade. Em evento do grupo sobre o tema, no primeiro semestre, o diretor do departamento de saúde e inovação da Organização Mundial de Saúde (OMS), Alain Labrique, ressaltou o avanço da saúde digital na esteira da pandemia de coronavírus.
— Houve uma expansão maciça entre todas as regiões da OMS, de um crescimento de 700% no uso de cuidados virtuais na Colômbia ao aumento de 1.200% na Nigéria — afirmou.
No Brasil, de janeiro do ano passado até junho, o programa SUS Digital realizou 4,6 milhões de ações de telessaúde, incluindo teleconsultas como as do quilombo do Pará, teleconsultorias para médicos e outros profissionais da área e telediagnósticos. Parte do atendimento ocorre nos 24 núcleos de telessaúde – 14 deles criados desde o ano passado com recursos do Novo PAC. Três deles atendem também unidades de saúde de outros Estados – cada um com uma especialidade diagnóstica.
De janeiro de 2023 a junho de 2024, o núcleo da Universidade Federal de Minas Gerais analisou 902.966 eletrocardiogramas de 12 Estados. Na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, o foco é dermatologia, com 498.710 diagnósticos por imagens, para 14 Estados, no mesmo período. Com o sistema, 40% dos pacientes catarinenses com exames analisados foram dispensados de acompanhamento para novas consultas.
Na área de oftalmologia, a Universidade Federal de Goiás (UFG) foi responsável por 11.541 diagnósticos. A especialidade é o exame de retinografia, realizado para oito Estados.
— Analisamos as imagens do fundo do olho, recebidas pela plataforma nacional de diagnóstico, para detecção precoce das principais causas de cegueira: catarata, retinopatia diabética, degeneração macular relacionada à idade e glaucoma — conta o oftalmologista Alexandre Taleb coordenador do Núcleo de Telemedicina e Telessaúde da Faculdade de Medicina da UFGO. — Com os diagnósticos podemos dizer aos médicos de saúde da família, lá da ponta, se o paciente tem prioridade na fila de encaminhamento com o especialista.
A prática também corta custos. Segundo Taleb, com a maior rapidez no atendimento é possível, por exemplo, tratar a retinopatia diabética com fotocoagulação a laser, técnica simples que pode ser realizada em ambulatório.
— É um procedimento barato, na casa dos cem reais pelo SUS — conta o médico. Mas, se o tratamento atrasar, pode ser necessária uma cirurgia com valor que, segundo o médico, pode ultrapassar R$ 4 mil.
O núcleo também atende remotamente unidades de saúde de 228 dos 246 municípios goianos em outras especialidades.
— Os médicos de saúde da família ou clínicos gerais das UBSs nos procuraram quando querem a opinião de um especialista ou de um outro colega para discutirem casos mais completos — diz ele.
A Telessaúde também pode trazer ajuda a profissionais de UTIs – necessidade que se evidenciou com surgimento da Covid.
— A mortalidade entre as UTIs na pandemia variava muito — diz Giovanni Cerri, ex-secretário da saúde do Estado de São Paulo e presidente dos conselhos do InovaHC, braço de inovação tecnológica do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, e do Instituto de Radiologia (Inrad) do hospital. — Se o paciente tinha a sorte de cair na UTI, sua chance de sobreviver era três vezes maior que na UTI errada.
Diante da disparidade, o HC lançou programas de telecapacitação e telemonitoramento para cuidados intensivos. Lançado há três meses, o programa TeleUTI Conectada permite que médicos baseados no Incor, no HC em São Paulo, monitorem em tempo real informações apuradas por equipamentos instalados em 90 leitos de UTIs de nove Estados, como Roraima, Maranhão, Ceará e Sergipe.
— É como se estivéssemos no quarto do paciente. Podemos ver informações como batimento cardíaco, oxigenação, taxa de gás carbônico, temperatura, pressão arterial — conta Carlos Roberto de Carvalho, diretor de saúde digital do HC. E exemplifica: — Vendo o ventilador mecânico, posso saber quanto oxigênio o paciente está precisando, qual é o volume de ar que eu estou dando e qual a pressão atingida —. Com base nos dados, os casos são analisados diariamente com os intensivistas da outra ponta.
— Podemos fazer uma discussão muito mais qualificada, com informações em tempo real em uma tela de computador e o médico do outro lado em outra— diz ele. Com duração prevista de seis meses e recursos do governo federal, o projeto tem término previsto para outubro. — Comprovamos que o conceito funciona, estamos agora pedindo a renovação — afirma.
Durante a pandemia, outra iniciativa do hospital mirou 27 UTIs, em todos os Estados, que concentravam atendimentos a gestantes e puérperas com Covid. No projeto, que durou de 2021 a 2023, médicos do Hospital das Clínicas discutiam casos remotamente e capacitavam profissionais da ponta, tanto a distância como presencialmente. Segundo Carvalho, a iniciativa resultou na queda de 40% na morte das gestantes. Em alguns casos, como o da UTI de Porto Velho, em Rondônia, a mortalidade de mulheres e bebês despencou ainda mais, de 90% para 15%.
O programa foi parte de parceria com o sistema de saúde britânico com o objetivo de desenvolver soluções de saúde digital que possam ser implementadas no restante da rede do SUS. Entre os objetivos estava também aumentar os atendimentos para os pacientes do hospital. Desde 2022, o HC realizou cerca de 500 mil consultas online. Segundo para o ano que vem, a meta é de 300 mil pessoas à distância, na maior parte pacientes crônicos.
Em outra parceria internacional, o HC fechou este ano um acordo de cooperação com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). Um dos objetivos da consultoria é expandir o modelo desenvolvido pelo InovaHC, que permite a realização de exames de imagem, como ultrassom feitos com aparelhos portáteis, com transmissão simultânea por uma rede 5G para centros médicos de referência. Com isso, o atendimento pode ser feito à distância por profissionais como agentes de saúde e enfermeiro, sob a supervisão remota em tempo real de médicos especialistas.
A tecnologia foi testada neste ano em programa piloto no Território Indígena do Xingu. Em oito dias foram atendidos 42 indígenas. Com base nos ultrassons realizados, três dos pacientes foram encaminhados para tratamentos médicos, com diagnósticos de cálculo na vesícula, gestação de alto risco e abscesso hepático. Agora a meta é implementar o sistema de forma permanente no Xingu e expandir a atuação de sua rede 5G para que possa ser implementado em outras regiões isoladas, no Norte e Nordeste, como conta o médico participante do programa Marcio Meira, do Inrad.
— Não vamos conseguir implementar um programa de saúde digital que funcione em um país continental como o nosso se não houver conectividade — avalia Cerri. E a qualidade da conexão varia muito conforme a região. O Maranhão é o Estado com o pior desempenho, com 25,28 pontos na escala de zero a cem do Índice Brasileiro de Conectividade (IBC), da Anatel. Roraima, Amazonas, Piauí e Pará também estão na pior faixa. Na ponta oposta, Distrito Federal lidera o ranking, com 95,6 pontos. A lista é seguida por São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, todos com desempenho classificado como de “alta conectividade” pelo IBC.
Segundo o Ministério da Saúde, a diferença no grau de conectividade dos Estados e município, aliada a critérios sociais, será um fator considerado no repasse este ano de R$ 464 milhões do Programa SUS Digital para que Estados e municípios tracem planos de ação para digitalização da área da saúde.
— A realidade do Brasil é muito diversa, muito desafiadora — diz a secretária da informação e saúde digital do Ministério da Saúde, Ana Estela Haddad. — Existem locais que estão enfrentando o desafio da conectividade, outros de equipamentos ou de capacitação das equipes.
— Mas a gente está avançando — afirma. — A Rede Nacional de Dados de Saúde tem mais de 1,8 bilhão de registros disponíveis — diz em relação à rede que permite a centralização e compartilhamento de exames, vacinas, atendimentos e internações em uma só plataforma. A maior parte desses — 1,2 bilhão de registros — é referente a vacinas.
Ainda falta avançar em relação ao prontuário eletrônico, que tem como objetivo permitir que diferentes unidades de saúde, como hospitais, laboratórios e UBSs, além de gestores da área, acessem dados do paciente.
— Essa integração está caminhando, mas é demorada e difícil— avalia Paulo Paiva, professor da área de informática médica da Unifesp. — Hoje, se um paciente chega aqui no nosso hospital não conseguimos, por exemplo, acessar exames feitos em outros lugares.
Parte da dificuldade vem das diferenças entre os sistemas para armazenamento de dados utilizados pelo Brasil afora.
— A informação está fragmentada — diz Haddad. Isso porque, afirma ela, parte dos sistemas de informação foram desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, no Datasus. Estados e municípios têm sistemas próprios, feitos internamente ou adquiridos de empresas.
Na avaliação da secretária, vencidos os entraves à universalização do prontuário eletrônico, sem data para conclusão, trará duas grandes vantagens. Para os pacientes, dará agilidade ao tratamento. E, para gestores da área de saúde, a consulta aos dados, sem identificação dos pacientes, pode se tornar uma ferramenta importante na tomada de decisões. É o que ocorre em larga escala em países do G20 como o Canadá, onde 93% dos médicos de atenção primária usavam os registros digitais dos pacientes, segundo dados de 2022.
Fonte: O Globo
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