Acostumado a fotografar cirurgias no HCor, hospital multiespecialista em São Paulo, onde trabalha há sete anos, o cardiologista Luiz Angelo Peixoto resolveu usar suas habilidades extras para registrar também os bastidores da rotina médica nesse momento de pandemia.
Assim, desde abril de 2020, durante as breves pausas entre um atendimento e outro, ele tem documentado os profissionais da linha de frente —e não apenas médicos e enfermeiros, mas também o pessoal da limpeza, da segurança, da cozinha— e a luta dos pacientes.
Neste período, captou imagens tanto na rede privada quanto na pública em São Paulo e Manaus.
O projeto recebeu o nome de "Registros da Linha de Frente" e deverá ser lançado em 2022 no formato de livro fotográfico. "O que quero com esse trabalho é que as pessoas vejam a realidade. Tem muita fake news envolvendo a pandemia e também muita gente dizendo que não é verdade, mas tenho certeza que, se uma parte das que negam vissem algumas das minhas imagens, iriam repensar suas ideias", diz Peixoto.
VivaBem: Como surgiu a ideia de fotografar a pandemia nos hospitais?
Luiz Angelo Peixoto: No ano passado, quando a pandemia estourou, vi fotos de hospitais na Itália e nos Estados Unidos, e achei que valeria fazer algo parecido aqui, ainda mais depois que fui trabalhar nos hospitais de campanha. Desde então, o meu foco tem sido fazer um registro histórico deste momento, com imagens mais artísticas. Tenho documentado a rotina dos profissionais da linha de frente e a luta dos pacientes.
Iniciei fotografando, com as devidas autorizações, nos hospitais de campanha do Anhembi (em São Paulo) e Mauá (na Grande ABC). Quando eles foram desativados, fui para o Hospital Municipal de Brasilândia (na capital paulista) e também fiz fotos por lá. Registrei ainda mais dois locais, em Manaus, em janeiro e fevereiro deste ano: o Hospital Adventista de Manaus e a Unidade de Apoio aos Povos Indígenas (Uapi). Eu sou do Amazonas e quis ajudar quando a situação por lá ficou muito ruim.
E no HCor?
Tenho transitado entre os hospitais do SUS (Serviço Único de Saúde) e do setor privado. Segui atendendo e dando plantão no HCor. Inicialmente, fiquei receoso de fotografar a pandemia por lá. Achei que a direção e mesmo os profissionais e os pacientes não iriam aprovar, só que eles não apenas autorizaram, como disseram que seria algo importante para conscientizar as pessoas de que essa doença não é uma simples gripezinha, e sim algo grave, sério.
Até então, fotograva apenas para mim, não divulgava ou postava nada, inclusive para preservar a identidade dos pacientes. Mas aí me vi com um material bem extenso e pensei: 'Preciso fazer alguma coisa com isso, não posso deixar tudo guardado'. Resolvi me inscrever em festivais e concursos. Por enquanto, participei do Festival Internacional de Fotografia - Paraty em Foco e do Concurso Latino Americano de Fotografia Documental, do qual fui um dos finalistas.
Você tem ideia de quantas fotos tirou? E quais os seus planos para elas? Não sei dizer quantas imagens tenho, mas são muitas. Tem semana que faço mais ou menos 600 fotos, e às vezes, em um único dia, passo das 300. Agora estou organizando todo esse material para lançar um livro fotográfico, o "Registros da Linha de Frente".
Meu plano era fazer isso no primeiro semestre desse ano, mas veio a segunda onda da doença e adiei. Acredito que consiga lançar em 2022. O que quero com esse trabalho é que as pessoas vejam a realidade.
Tem muita fake news envolvendo a pandemia e também muita gente dizendo que não é verdade, mas tenho certeza que, se uma parte das que negam vissem algumas das minhas imagens, iriam repensar suas ideias.
Como tem conciliado as duas funções, de médico e fotógrafo?
Faço as fotos apenas nos meus intervalos de descanso e entre um atendimento e outro. Nestes meses todos já houve várias situações que dariam imagens bem interessante, mas que não consegui fazer porque estava atendendo. Por exemplo, em todo o meu documentário não tenho fotografias de reanimação, como algumas que ganham as capas dos jornais, porque sempre que isso aconteceu nos meus plantões eu estava participando do atendimento.
Apesar de tudo, fotografar a pandemia tem servido como uma terapia para mim. Os plantões são super estressantes, lidamos com muitos casos graves, muita tristeza e, fora desse ambiente, não temos tido momentos de descontração, está tudo intenso demais. Mas quando eu pego a câmera fotográfica, por mais que ainda esteja registrando o sofrimento, consigo dar uma desligada da função de médico. Até por isso prefiro usar um equipamento profissional e não o celular.
O foco dos seus registros mudou ao longo deste mais de um ano de pandemia?
Acredito que mudou sim. Comecei fotografando a luta das equipes médicas e dos pacientes. Agora, meu foco está mais nos outros profissionais que também estão atuando na linha de frente, como o pessoal da limpeza, da segurança, da cozinha, os ascensoristas...
O trabalho deles é fundamental e eles estão passando pelo mesmo estresse, sentindo os mesmos medos e angústias que médicos e enfermeiros. Lembro que uma copeira em particular me tocou. Em um plantão, ela precisava levar o jantar para os pacientes com covid e estava super nervosa porque teria de se paramentar toda e nunca tinha feito aquilo.
Certamente você fotografou muitos momentos impactantes. Tem algum que te marcou mais? Foram muitos momentos, mas tem dois que marcaram bastante. O primeiro foi no hospital de campanha do Anhembi. Estávamos com uma paciente muito jovem, de uns 20 e poucos anos. Ela precisou ser intubada e quem fez o procedimento foram dois médicos da mesma idade dela, ambos recém-formados. Eu estava lá fotografando, mas pronto para ajudar, e foi muito triste ver uma pessoa de tão pouca idade passando por aquilo e também vivenciar a dor dos profissionais em cuidar de alguém que podia fazer parte do mesmo grupo de amigos deles.
O outro momento foi em Manaus e envolveu uma médica residente. Ela estava tratando de um paciente grave e muito abalada, em uma situação que eu interpretei como sendo de estresse pós-traumático. Era visível no rosto dela o medo, a ansiedade e a angústia.
Antes da pandemia, você já fazia algum trabalho com fotografia em hospitais?
Há quatro anos, mais ou menos, fotografo alguns procedimentos cirúrgicos mais interessantes no HCor. Isso começou porque sempre precisamos de imagens das cirurgias para apresentar em congressos. Mas fazia os registros em ambientes controlados, apenas das cirurgias e da equipe médica envolvida ali, não tinha essa experiência de fotojornalismo.
E chegou a fazer alguma preparação para esse registro da pandemia?
Fiz alguns cursos online de fotografia documental. Também li e vi muita coisa de fotojornalismo e trabalhos de fotógrafos consagrados para me inspirar. Com tudo isso, acredito que consegui um material com uma visão bem ampla, realizado em vários hospitais de campanha, hospitais públicos e um hospital de referência, que é o HCor.
Por que decidiu ir para a linha de frente da covid-19?
Tive covid-19 bem cedo, ainda no final de fevereiro do ano passado. Tenho asma e fiquei muito mal, durante mais ou menos 28 dias, com falta de ar e tosse. Não precisei ser internado, mas ainda assim foi uma experiência bem difícil. Quando me recuperei, como teoricamente já estava imune --hoje sabe-se que pode haver reinfeção-- e por eu ter experiência com emergências e UTI, achei que poderia contribuir.
Além disso, sou especialista na área de arritmia, e a covid-19 causa muito arritmia, então pensei que meus conhecimentos seriam úteis no tratamento dos pacientes gaves.
Com o aumento no número de casos e mortes nos últimos meses, o que mais te chamou a atenção?
Houve uma grande mudança no perfil do paciente, sobretudo por conta das novas variantes da doença. No começo, eram mais idosos e com comorbidades. Agora, as UTIs estão cheias de pessoas mais novas.
Outro ponto é que a doença tem agravado de forma mais rápida, em poucos dias. No ano passado isso demorava mais para acontecer. Por outro lado, evoluímos muito em termos de atendimento. No HCor, agora temos um fluxo bem organizado e diversos protocolos. Isso nos deixa mais tranquilos para trabalhar.
Para finalizar, qual a sua recomendação para as pessoas nesse momento?
É que tomem a vacina, e não só a primeira dose, mas também que voltem para receber a segunda. Já temos visto efeitos positivos da imunização.
Por exemplo, há algumas semanas atendi um paciente de 90 anos que pegou covid-19. Ele tinha tomado a primeira dose e teve apenas a forma branda da doença.
Além disso, precisamos da colaboração da população. Nós, profissionais da saúde, estamos exaustos, mas seguimos fazendo a nossa parte, só que a população também precisa fazer a dela. Ainda não é a hora de ir para festas, para a praia, é preciso evitar aglomerações, se proteger e proteger os outros.
Fonte: UOL
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