Embora a recomendação de não rastrear o câncer de pâncreas na população geral continue valendo, especialistas indicam que dados recentes embasam a vigilância para as pessoas de alto risco.
A orientação de não rastreamento vem da US Preventive Services Task Force (USPSTF), que anunciou recentemente que esta recomendação – feita em 2004 – ainda está vigente. A decisão, publicada on-line em 06 de agosto no periódico Journal of the American Medical Association, não foi inesperada, porque não existem estudos prospectivos que subsidiem o rastreamento do câncer de pâncreas em pessoas assintomáticas desde aquela época.
No entanto, em três editoriais que acompanham estudos, médicos e pesquisadores discutem a questão do rastreamento das pessoas de alto risco.
Todos os editorialistas fazem um apelo para que a recomendação de não rastreamento da USPSTF não ofusque os grandes avanços que têm sido feitos desde 2004 na identificação de pessoas em situação de risco que poderiam se beneficiar com a vigilância. As pessoas com alto risco de adenocarcinoma ductal de pâncreas estão “fora da alçada da USPSTF”, de acordo com a declaração do relatório de evidências.
Todos os dados que respaldam o rastreamento do câncer de pâncreas são relativos às pessoas de alto risco. A USPSTF avaliou os 13 estudos prospectivos disponíveis no momento de seu primeiro ponto de corte para a revisão dos dados em 27 de abril de 2018. Embora a USPSTF tenha mantido a recomendação de não rastrear para os adultos assintomáticos, pela ausência de evidências, a força-tarefa indicou que “esta recomendação não se aplica às populações de alto risco”. A USPSTF não fez nenhuma recomendação de rastreamento dessas pessoas, mas os autores dos três editoriais se encarregaram de preencher essa lacuna.
Terceira maior causa de morte por câncer
O câncer de pâncreas é atualmente a terceira principal causa de morte por câncer nos Estados Unidos. A previsão é que passe para o segundo lugar até 2030. Aproximadamente 90% das pessoas com a doença morrem nos cinco primeiros anos após o diagnóstico. O médico e coautor da USPSTF, Dr. Chyke Doubeni, declarou em uma entrevista no site do periódico JAMA que, “de fato esta é uma doença letal, e que muito nos preocupa”.
Embora haja algumas evidências de que o tratamento precoce traga melhores resultados, a janela de oportunidade é pequena. Pela localização do órgão, o câncer de pâncreas geralmente aparece em estágio avançado. O tumor também progride rapidamente: os pacientes com câncer de pâncreas em estágio IV tiveram em média apenas 1,3 anos a mais do que os pacientes com a doença em estágio I, de acordo com uma análise recente do banco de dados do National Cancer Institute’s Surveillance, Epidemiology and End Results.
No momento do diagnóstico, mais da metade dos pacientes apresenta doença metastática. O único tratamento que oferece potencial curativo é a pancreatoduodenectomia (cirurgia de Whipple), cujo risco de morte perioperatória varia de 1% a 8%, de acordo com a revisão das evidências feita pela USPSTF.
Noeditorial do periódico JAMA, que acompanha o estudo, a Dra. Aimée Lucas, médica da Icahn School of Medicine no Mount Sinai, e a Dra. Fay Kastrinos, médica da Columbia University, ambas nos Estados Unidos, reconheceram que “seria possível imaginar que o rastreamento do câncer de pâncreas em pacientes assintomáticos de médio risco pudesse fazer mais mal do que bem”. As editorialistas mencionaram a baixa prevalência, o potencial lesivo dos resultados falsos positivos do rastreamento e os riscos associados ao procedimento cirúrgico.
No entanto, as médicas defendem que as pessoas com aumento de cinco vezes no risco relativo podem se beneficiar com a vigilância.
As pessoas de risco são aquelas com história familiar de câncer de pâncreas (especificamente, aquelas para as quais dois ou mais parentes consanguíneos e pelo menos um parente de primeiro grau tiveram a doença); aquelas com mutações da linha germinativa em ATM, BRCA1, BRCA2, CDKN2A, PALB2, PRSS1, STK11, TP53 e com incompatibilidade dos genes de reparo na síndrome de Lynch; e os pacientes com diagnóstico recente de diabetes (que confere um risco oito vezes maior).
O momento exato da vigilância dessas pessoas pode ser definido pela história natural da doença, sugeriram as Dras. Aimée e Fay. Por exemplo, mesmo nas famílias com vários parentes tendo a doença, a média de idade ao diagnóstico é de 68 anos, “que pode ajudar a determinar a idade inicial de vigilância para as pessoas de alto risco”, escreveram as editorialistas.
No editorial do periódico JAMA Surgery, o Dr. Ralph Hruban, médico da Johns Hopkins School of Medicinee o Dr. Keith Lillemoe, médico do Massachusetts General Hospital em Boston, ambos nos EUA, destacam os primeiros resultados do estudo Cancer of the Pancreas Screening (CAPS), que foram publicados no ano passado. O Dr. Ralph participou deste estudo.
O estudo CAPS acompanhou 354 pessoas de alto risco genético de câncer de pâncreas durante 5,6 anos em média. No estudo, nove dos 10 casos de câncer de pâncreas detectados durante a vigilância eram ressecáveis e 85% desses pacientes sobreviveram três anos. Por outro lado, os quatro casos de câncer de pâncreas sintomático que apareceram em pacientes que não estavam fazendo vigilância eram todos irressecáveis, e apenas um desses pacientes sobreviveu três anos.
“Isso representa um avanço crítico, porque sugere que é possível haver a identificação em estágio mais inicial com seu consequente benefício”, comentaram os Drs. Ralph e Keith.
As Dras. Aimée e Fay, no seueditorial no periódico JAMA, também citaram os resultados do CAPS, mas reconheceram que a população do estudo está “fora do escopo da população de interesse da força-tarefa”. Embora o CAPS não tenha sido considerado pela USPSTF, os 13 estudos de coorte avaliados foram realizados com “pessoas de alto risco familiar”.
O CAPS pode ter sido publicado tarde demais para ser avaliado pela USPSTF. Os resultados do estudo foram publicados em setembro de 2018, seis meses após o ponto de corte para a pesquisa de dados da USPSTF de 27 de abril de 2018, mas dentro do período de vigilância continuada da literatura pela força-tarefa, que se estendeu até 22 de março de 2019. O estudo está listado nas referências do relatório de evidências, mas não foi mencionado no corpo do texto.
No editorial no periódico JAMA, os Drs. Keith e Ralph reforçam os pontos positivos. Os editorialistas descreveram o futuro “extraordinariamente brilhante” que a vigilância oferece para as pessoas de alto risco de câncer de pâncreas. Os médicos disseram que, apesar da raridade da doença, as pessoas de risco agora podem ser identificadas, e os seus riscos quantificados – e podem ser alvo de rastreamento. Isso foi possibilitado pelas descobertas como as variantes linha germinativa portadoras de risco e a relação com o diabetes de início recente, afirmaram. Atualmente também já se conhece os deflagradores moleculares dos tipos de pré-câncer e câncer precoce de alto grau, oferecendo metas para a tecnologia da detecção precoce, acrescentaram os editorialistas.
No terceiro editorial, publicado no periódico JAMA Internal Medicine, Dr. Ralph e colaboradores se estenderam sobre tecnologias promissoras que poderiam transformar o panorama da vigilância caso sejam validadas. Por exemplo, estão sendo feitos estudos com várias biópsias líquidas muito sensíveis para o DNA do câncer de pâncreas e para as proteínas relacionadas com os marcadores tumorais. Os editorialistas também citaram um estudo multicêntrico com 221 pacientes nos quais um exame de sangue com vários marcadores identificou com alta especificidade 64% dos pacientes com câncer de pâncreas em fase inicial.
Esses editorialistas também indicaram que o International Cancer of the Pancreas Screening Consortium publicou diretrizes de rastreamento das pessoas de alto risco.
JAMA. Publicado on-line em 06 de agosto de 2019. Íntegra da recomendação; Relatório de evidências; Editorial
JAMA Surg. Publicado on-line em 06 de agosto de 2019. Editorial
JAMA Intern Med. Publicado on-line em 06 de agosto de 2019.
Fonte: Triagem do câncer de pâncreas em pessoas de alto risco – Medscape – 30 de agosto de 2019.
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