Madri — Os pesquisadores que recebem financiamento de empresas que fabricam cigarros eletrônicos não terão o direito de apresentar suas pesquisas se um novo estatuto for aprovado no próximo congresso internacional da European Respiratory Society (ERS) de 2019.
O comunicado reprisa uma votação semelhante feita em 2000 que coibiu o recebimento de financiamento da indústria do tabaco pelos pesquisadores.
“Tememos que nossos colegas sejam usados”, disse o Dr. Jørgen Vestbo, médico da University of Manchester, no Reino Unido, que será codiretor de uma sessão sobre cigarros eletrônicos e dispositivos de tabaco aquecido.
“Os pesquisadores, se quiserem, ainda poderão obter suporte dos laboratórios para fazer as pesquisas que evidentemente beneficiam a indústria de cigarros eletrônicos”, explicou Dr. Jørgen. Essa estratégia remonta aos anos 60 e 70 do século passado, quando grandes empresas de tabaco financiaram pesquisas científicas que sugeriram que fumar não era tão prejudicial para a saúde humana, como atualmente sabemos ser.
O Dr. Jørgen disse se preocupar que a propaganda e a ciência patrocinadas pela indústria prevaleçam, como aconteceu com o tabaco, especialmente pelo fato de os cigarros eletrônicos serem considerados uma ferramenta inócua de redução de danos.Tememos que nossos colegas sejam usados
Essa linha de raciocínio pode ser perigosa, disse o médico. “Nós não devemos fechar os olhos para o fato de grande parte da indústria de cigarros eletrônicos ter vínculos com a indústria do tabaco.”
Dr. Jørgen disse ao Medscapeque está confiante que o novo estatuto seja aprovado: “eu não acredito que alguém vá se opor”.
Duas sessões – uma sobre doença pulmonar induzida por cigarros eletrônicos e outra que defende a política do uso de cigarros eletrônicos – foram acrescentadas à programação apenas alguns dias antes do início do evento.
Quando se trata de cigarros eletrônicos, “temos muito o que conversar”, disse o Dr. Jørgen.
O relatório de uma força-tarefa sobre a difusão da nicotina, publicado recentemente pela comissão de controle do tabaco da ERS (Eur Respir J. 2 019;53:1801151), não recomenda as estratégias de redução de danos para a cessação do tabagismo para a população. Na verdade, o relatório afirma que “não há evidências de que os cigarros eletrônicos sejam mais seguros do que o tabaco em longo prazo”.
Mas a ciência dos efeitos deletérios que os cigarros eletrônicos podem causar nos seres humanos ainda não está clara.
E a possível contribuição para a cessação do tabagismo dos cigarros eletrônicos, defendida por alguns, semeia a discórdia entre os cientistas e os médicos, mesmo que todos estejam “do mesmo lado”, disse a Dra. Adriana Filippidis, Ph.D., médica do Imperial College London, que vai discutir novos produtos de tabaco e nicotina durante a sessão na qual o Dr. Jørgen será codiretor.
Efeitos em longo prazo
Um fumante de longa data pode trocar para os cigarros eletrônicos, porque é “melhor” para ele, explicou Dra. Adriana, mas o seu filho de 16 anos pode ter dificuldade de entender “que esta pode ser uma solução para uma pessoa que não consegue parar de fumar, mas é uma péssima escolha para quem tem 16 anos e não fuma”.
Embora “estejamos do mesmo lado” da questão, “vivemos uma dicotomia,” disse a médica. “Me entristece ver que a comunidade que trabalha com controle do tabagismo – muitos de seus membros têm dedicado suas vidas à luta contra o fumo e a salvar a vida das pessoas – está agora dividida sobre a questão dos cigarros eletrônicos.”Vivemos uma dicotomia.
Notícias recentes sobre internações e mortes de jovens causadas por cigarros eletrônicos alarmaram os médicos que lidam com doenças respiratórias. “Temos acompanhado as notícias de perto e queremos implementar princípios de prevenção”, disse Dr. Jørgen.
“Não conhecemos os efeitos em longo prazo”, ressaltou. “Já nos saímos muito mal na luta contra uma epidemia de tabagismo, por que nos sairíamos melhor nesta?”
A discussão de um relatório preliminar recente sobre 53 internações hospitalares nos Estados Unidos – sugerindo que os produtos com tetraidrocanabinol utilizados nos dispositivos dos cigarros eletrônicos podem ter causado um conglomerado de doenças, que “representa uma síndrome ou síndromes clínica(s) emergente(s)” (N Engl J Med. Publicado on-line em 06 de setembro de 2019) – foi o centro das atenções na apresentação do grupo de especialistas e na sessão sobre doença pulmonar induzida por cigarros eletrônicos, que foi acrescentada ao programa.
“Precisamos entender o que os médicos precisam saber para que identifiquem melhor quando alguém está no pronto-socorro em decorrência de alguma doença causada por cigarros eletrônicos”, disse Dr. Jørgen.
Muitas internações relacionadas com os cigarros eletrônicos foram notificadas nos Estados Unidos, mas não há evidências de aumento de internações desse tipo na Europa. Isto pode ocorrer porque os dados médicos são registrados separadamente em cada país europeu, e suas políticas são diferentes, explicou.
“Em alguns lugares, você ainda pode fumar nos restaurantes”, disse Dr. Jørgen. “O Reino Unido é, provavelmente, o grupo de países mais amigáveis ao cigarro eletrônico da Europa, defendendo que esta é uma maneira de parar de fumar e que estes dispositivos foram projetados para ser mais seguros do que os cigarros comuns.”
No Reino Unido, produtos dos cigarros eletrônicos foram aprovados pela Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency e os cigarros eletrônicos são respaldados como auxílio para parar de fumar.
Precisamos enviar uma mensagem, disse o Dr. Jørgen. “Quanto mais os políticos esperarem para impor restrições, mais tempo a indústria dos cigarros eletrônicos terá para convencer as pessoas de que esta é uma prática segura e uma boa forma de parar de fumar.”
Proibições de cigarros eletrônicos
Na semana passada, a Índia proibiu a entrada de cigarros eletrônicos no país – uma jogada política ousada em um país com 106 milhões de fumantes.
Nos Estados Unidos, os cigarros eletrônicos aromatizados – populares entre os adolescentes – estão a sendo proibidos em muitas jurisdições.
Os jovens americanos estão usando cada vez mais cigarros eletrônicos. Entre estudantes do segundo grau, os índices de uso de cigarros eletrônicos aumentou de 11,7% em 2017 para 20,8% em 2018 (MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2018;67:1276-1277). Em contraste, 2,8% dos adultos usavam cigarros eletrônicos em 2017 (MMWR, Morb Mortal Wkly Rep. 2018;67:1225-1232).
No fim das contas, os cigarros eletrônicos podem ajudar uma pessoa a parar de fumar cigarros comuns, mas também podem mantê-la viciada em tabaco, disse a Dra. Adriana, indicando um estudo que comparou os cigarros eletrônicos aos adesivos de nicotina. No primeiro ano, os participantes do grupo do cigarro eletrônico tiveram mais probabilidade do que os do grupo dos adesivos de ainda estar usando o auxílio para parar de fumar (N Engl J Med. 2019;380:629-637).
“Temo que as pessoas que param de fumar usando cigarros eletrônicos acabem fazendo um consumo misto”, disse a médica.
“Não podemos promover isso para a redução de danos. Já temos outros métodos para parar de fumar que sabemos que funcionam.”
Fonte: Medscape
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